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Autores de 'Aliança do crime' se dizem orgulhosos de reportagem

Livro de Dick Lehr e Gerard O’Neill deu origem ao filme estrelado por Johnny Depp
Johnny Depp como o gângster James 'Whitey' Bulger, em 'Aliança do crime' Foto: Divulgação
Johnny Depp como o gângster James 'Whitey' Bulger, em 'Aliança do crime' Foto: Divulgação

RIO — A prisão de um dos maiores gângsters de todos os tempos, retratado no filme "Aliança do crime", só foi possível, em parte, graças a dois jornalistas que enfrentaram a desconfiança das autoridades para publicar a escandalosa história de James Bulger.

Após meses de investigação, foi descoberto que James “Whitey” Bulger havia sido responsável, durante os anos 1970 e 1980, por assassinatos, estupros, roubos, extorsões e tráfico de drogas, tudo com a conivência do FBI. O esquema se estruturava sobre uma troca de favores: Bulger fornecia informações sobre gangues rivais, em particular a máfia italiana, à agência federal, que por sua vez encobria os crimes do delator.

À época, a reportagem, publicada por Dick Lehr e Gerard O’Neill no jornal “Boston Globe”, em 1988, foi vista como especulação. Afinal, em quem acreditar? Nos orgulhosos homens do governo que vinham recebendo cobertura favorável por desmantelar a máfia italiana? Ou num grupo de jornalistas que o FBI pintava como pessoas com interesses escusos? Além disso, Bulger tinha ascendência irlandesa, um povo historicamente averso a informantes.

Mas, quase uma década depois, a justiça intimou o órgão a confirmar a história. Bulger passou a ser o segundo nome mais procurado pelo FBI, atrás apenas de Osama bin Laden. A recompensa por informações que pudessem levar ao paradeiro do criminoso chegava a US$ 2 milhões.

Hoje, os dois principais envolvidos na trama estão detidos: John Connolly, o agente que se comunicava com o gângster, está numa penitenciária da Flórida. Já Bulger foi capturado em 22 de junho de 2011, na Califórnia, onde vivia foragido até então. Toda a investigação, compilada no livro “Aliança do crime” (Editora Intrínseca), lançado no mês passado, deu origem ao filme homônimo — em cartaz desde quinta-feira — estrelado por Johnny Depp, cuja sombria caracterização do chefão do crime o colocou como um dos principais candidatos ao Oscar de melhor ator. “Agora Bulger é parte da História, mas também fez a História. É o primeiro da linha, à frente de John Dillinger, Al Capone, Machine Gun Kelly, John Gotti”, diz Lehr, em entrevista ao GLOBO.

Vocês receberam ameaças por publicarem a reportagem. Sentiram medo?

O’Neill: As ameaças provocaram o efeito oposto. Apenas provaram que estávamos seguindo o caminho certo. Durante o tempo em que chefiei a equipe que investigou a história, contávamos com advogados especializados em difamação. O papel deles era defender o material que podia ser contestado, o que sempre acontecia ao fim de um projeto assim. Quando uma dúvida surgia, checávamos o fato mais de uma vez e publicávamos assim que possível.

Qual o aspecto mais chocante de Bulger?

Lehr: Por onde começar? O primeiro, evidentemente, era ele ser um informante do FBI. A revelação ia contra sua persona pública e tudo aquilo em que ele acreditava enquanto chefe do crime, um posto que exigia total lealdade dos comparsas. Levou um tempo para a minha ficha cair. Precisei recalibrar o que eu conhecia da história contemporânea de Boston. Depois, vieram os tremores secundários, como os assassinatos que ele cometera com a proteção do FBI e o jeito que ele matava, torturando e estrangulando as suas vítimas, incluindo mulheres. Chegava a empilhar os corpos que enterrava. A depravação parecia não ter limites.

Apesar do que Bulger e Connolly fizeram, é possível encontrar neles traços de humanidade?

O’Neill: Bulger foi um showman que conseguia prender a atenção das pessoas como se estivesse fazendo um stand-up. Tudo bem que era um humor mordaz, mas sabia animar uma plateia. Só que, como todo comediante, tinha um lado particular sombrio. Já Connolly sempre foi muito arrogante. Difícil achar humanidade aí.

Ambos devem ter tido razões racionais para querer tanto conquistar uma posição de poder.

O’Neill: Poder é a poção mágica dos políticos. Bulger veio de uma infância humilde, mas sempre teve um forte entendimento do significado do poder. Ele protegia seu círculo, mas exigia, em troca, obediência. Seu lado ruim era muito perigoso.

“A reportagem que fizemos representa aquilo que o jornalismo deveria ser”

Dick Lehr
Jornalista e autor de 'Aliança do crime'

Depois de muitos anos, Connolly e Bulger finalmente foram presos. Consideram-se responsáveis pelo desfecho?

Lehr: Para mim, a reportagem que fizemos representa aquilo que o jornalismo deveria ser: uma ferramenta que desafie o poder e os órgãos públicos, que os responsabilize pelos seus atos e que ponha informações para o julgamento de toda a população. Em 1988, não percebíamos ainda o quão sujo era o elo entre o FBI e Whitey Bulger. Ninguém percebia. Mas a reportagem abriu a porta desses segredos e desencadeou o longo processo que resultou na desmistificação de Whitey Bulger e no escancaramento do maior escândalo da história do FBI.

O sentimento, hoje, é de orgulho?

Lehr: Claro. Foi um momento importante nas nossas carreiras. Quando você começa a estudar Jornalismo, tem o sonho de fazer a diferença. Pelo menos é isso que ensino, hoje, aos meus alunos na Universidade de Boston. O trabalho no “Boston Globe” sobre Whitey e o FBI também ajudou a cidade e o país a entender o erro e o dano gigantesco que fluía da longa aliança corrupta entre o FBI e um chefão do crime. Eu realmente acredito nisso.

De onde veio o interesse em explorar a vida de Bulger?

Lehr: Ao longo dos anos, uma coisa que percebemos foi que o Whitey era, provavelmente, o chefe do crime mais proeminente do século XX. Agora ele é parte da História, mas ele também fez a História. É o primeiro da linha, à frente de gângsteres como John Dillinger, Al Capone, Machine Gun Kelly, John Gotti e outros, que também atuaram nos Estados Unidos. O motivo não é a quantidade de gente que Whitey matou nem a fortuna que ele acumulou através de atividades ilícitas. Muito menos a sua longevidade: você tem que levar em consideração que pessoas com essa “profissão” normalmente não vivem tanto assim (Bulger tem hoje 86 anos) . O motivo é o FBI. Whitey fez algo que nenhum chefão do crime jamais fez: colocou nas mãos um grupo de agentes que pertenciam, na prática, à gangue dele. Que gângster não ia querer uma das agências mais poderosas do país cuidando dele?

Além de dirigir o filme, Scott Cooper adaptou a obra para o cinema. Ele fez jus ao livro?

O’Neill: Foi o cara ideal. Ele entendeu a história, os personagens e a ambientação. Visitei o set algumas vezes. As cenas ficaram perfeitas.