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A convite da Flupp, autores escrevem sobre o Rio de Janeiro do futuro

Nomes como Fausto Fawcett e Martinho da Vila projetam o futuro da cidade em contos
No futuro de Fausto Fawcett, violinos cheios de aplicativos são cravados no alto dos morros cariocas Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
No futuro de Fausto Fawcett, violinos cheios de aplicativos são cravados no alto dos morros cariocas Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

RIO - Uma cidade submersa, com mergulhadores — como os escafandristas da canção de Chico Buarque — buscando objetos que ficaram esquecidos na inundação, enquanto os antigos morros sobrevivem como ilhas. Combates de violinos ultratecnológicos nas favelas. A educação e a saúde públicas completamente democratizadas. Um território de resistência negra e indígena. Um espaço urbano de vigilância extrema, nos moldes de “Robocop”. Os diversos cenários possíveis para um Rio do futuro, projetando a cidade em seu aniversário de 500 anos, aparecem descritos nos contos de “Rio 2065” (Selo Flupp/ Casa da Palavra), previsto para ser lançado em março do ano que vem. O projeto, proposto pela Flupp — Festa Literária das Periferias, cuja quarta edição começa amanhã no Complexo Babilônia/ Chapéu Mangueira, reúne 70 autores, entre eles Martinho da Vila, Carlito Azevedo, Luiz Eduardo Soares, Fausto Fawcett, Fred Coelho, Cacá Diegues, Marcus Faustini, Elisa Lucinda, Bernardo Vilhena, MC Marechal, Arthur Dapieve e Paulo Scott.

Há projeções otimistas e pessimistas — com algumas previsões recorrentes em alguns contos, como a invasão das águas provocada pelo aquecimento global. Em meio a eles, o livro faz um exercício de entendimento dos caminhos que o Rio pode seguir a partir do cenário que se anuncia hoje — questões como segurança pública e os planos de ocupação da cidade aparecem discutidas ali, num exercício de pensar o presente a partir do futuro, algo que está na natureza do próprio gênero ficção científica.

— A distopia é uma das principais características do livro — avalia Julio Ludemir, um dos idealizadores da Flupp, ao lado de Ecio Salles. — Esses textos falam de uma sociedade que jamais abriu mão de seus vícios, que não conseguiu se reinventar da argamassa que a constituiu, que é a escravidão, o racismo. Uma sociedade que não consegue superar as limitações que estão no cerne de seus problemas é a mesma sociedade que não consegue enfrentar os problemas ambientais que podem produzir o cenário previsto pela maioria dos autores.

Ludemir, porém, aponta outra perspectiva que também aparece no livro — a do futuro como o prosseguimento de um processo de melhora da cidade ao longo das últimas décadas:

— Gostaria de lembrar o momento em que Martinho da Vila foi à Faetec da Babilônia, onde vamos fazer a Flupp. Ele lembrou todas as mudanças pelas quais a favela passou. Ele conhecia o morro de 30 anos atrás. Lembrou do processo de formação do PT, que resultou na única governadora negra de nossa história, a Bené (Benedita da Silva), de um momento muito particular do movimento negro carioca. Quem testemunhou todas as mudanças ocorridas na Babilônia e no Chapéu-Mangueira tem inevitavelmente um olhar esperançoso para o futuro — diz Ludemir. — Fazer o livro dialogando com o futuro é também uma das nossas leituras do principal capital do Rio, que é exatamente o futuro.

O livro traz autores jovens e consagrados, de diversos lugares da cidade e da Região Metropolitana, num painel traçado a partir dos encontros realizados pelo ciclo Flupp Pensa desde maio. Aí também se mostra uma perspectiva defendida pela Flupp já na criação de seu conceito — de descentralização do conhecimento e do debate:

— Eles reuniam um autor do centro e outro da periferia. No Pantanal, bairro de Caxias em que morou Tenório Cavalcanti, havia de um lado Zuenir Ventura e do outro Yasmin Thayná, cujo conto que deu origem ao filme “Kbela” (dirigido por ela) foi publicado na primeira edição da Flupp Pensa. Esse encontro de periferia e centro é muito próprio do Rio, uma das poucas cidades do mundo em que a periferia está no centro — diz Ludemir.

Os contos do livro exploram diversos formatos. Charles Feitosa, por exemplo, imagina o roteiro de um programa de rádio (“Rádio-Mental, sempre ligado na frequência do seu pensamento”) e a partir dele dá pistas de como é essa cidade do futuro em aspectos geográficos (“Bom dia para você que vive nessa cidade, que vai da antiga Avenida Atlântica até a Avenida Paulista”) e socioambientais (“Somos quase cem milhões de paulirocas, todos juntos respirando o mesmo aroma, esse maravilhoso cheiro de cocô de cachorro misturado com fumaça de escapamento de fábricas e uma pitada de brisa do mar”).

Fred Coelho, por sua vez, reflete sobre os motivos da parca tradição brasileira na ficção científica (“E como escrever sobre o futuro mediante a necessidade de tirar o atraso? Já começamos atrás do presente, ou seja, no passado do tempo que desejávamos ser.”). A partir daí, imagina-se como um personagem projetado no futuro escrevendo uma carta a seu bisneto. Ali, fala das transformações passadas pelo Brasil e pela cidade fundada em 1565 (e agora “afundada” sob as águas, como descreve): em 2025, os índios se revoltando contra o extermínio e tomando Brasília; a resposta numa “ditadura civil moralista extrativista” que instaurou uma espécie de reedição de Canudos assassinando os índios e queimando suas florestas; o caos climático como consequência; migrações em massa.

Entre as projeções curiosas há algumas sinistras, na linha do “1984” de George Orwell. É o caso do “Ato Institucional Tecnológico Número Sete, que foi um decreto nacional referindo-se à utilização extrema da tecnologia por parte do Estado, extinguindo qualquer referência às tradições”, no texto de Luiz Fernando Pinto. Outras soam lúdicas, apesar de em algum lugar assustadoras, como o reality-áudio imaginado por Luiz Eduardo Soares, “que liga os ouvintes à intimidade de um grupo de amigos imaginários, representados por vozes que seguem roteiros gerados por um software, cuja tarefa é combinar aleatoriamente o repertório da literatura universal e do teatro”.

A Flupp 2015, que homenageia Nise da Silveira, tem o futuro em sua perspectiva não somente no projeto do livro “Rio 2065”. Ele está em mesas como a de Alan Campbell, que faz o caminho da narrativa dos games para a literatura:

— O primeiro critério da curadoria da Flupp foi tentar dialogar com o futuro, com um Rio de Janeiro daqui a 50 anos — explica Ludemir. — É imensamente difícil trabalhar com a memória da favela. As possibilidades de registro são próprias do mundo burguês, que tem registros escritos como a carta, o cartório em que são lavradas as propriedades privadas, além das fotografias, dos filmes de super-8 etc.

Ele diz ainda que “há uma sábia tentativa de se esquecer o passado, um depósito de grandes dores e privações”:

— Por isso, o lugar em que mais se encarna a ideia de que o futuro será melhor é a favela. Um dos símbolos da favela é o puxadinho, que aponta sempre para as próximas gerações, para as pessoas que vão sendo incorporadas à família.

DAQUI A 50 ANOS

“Logo percebo que as pessoas que por ali transitavam, seja adentrando ou saindo dele, têm o seu acesso controlado por dois homens cujas fardas mais lembravam a vestimenta do ‘Robocop – o policial do futuro’. (...) logo percebo que no lado do coração daqueles guerreiros medievais está afixado em auto-relevo o reluzente brasão da Policia Militar do Estado do Rio de Janeiro. (DJ TR)

Para Arthur Dapieve, Babilônia, Pavão-Pavãozinho e Corcovado virarão 'ilhas' Foto: Ricardo Leoni / Agência O Globo
Para Arthur Dapieve, Babilônia, Pavão-Pavãozinho e Corcovado virarão 'ilhas' Foto: Ricardo Leoni / Agência O Globo

“A segurança pública no Rio e nas demais áreas conflagradas transferiram-se à autoridade das forças armadas transnacionais unidas, desde 2047, e a pena de morte foi instaurada em zonas de conflito, denominadas áreas de proteção da vida e defesa da paz. As línguas foram extintas e substituídas por uma linguagem universal patenteada pelo tradutor goggle-max. (Luiz Eduardo Soares)

“Em 18/08/2036 Movimento Quilombista e Movimento Indígena assumem a coordenação política da Cidade Maravilhosa trazendo filosofia ubuntu, perspectivismo ameríndio, cultura dagara e quilombismo como as bases para (...) uma cultura política de vanguarda (...). Em 10/06/2050 a Aldeia Quilombista Rio de Janeiro torna-se um território emancipado do resto do Brasil. (Renato Noguera)

“Mesmo com a quantidade de boias coloridas que assinalam os pontos mais rasos e perigosos para a navegação dos barcos para turistas, turistas de todo o mundo que ainda vêm conhecer a Princesinha do Mar (...). As ilhas da Babilônia e do Pavão-Pavãozinho, as outras ilhas mais além, o Cristo protegendo a cidade do topo da ilha do Corcovado. (Arthur Dapieve)

“De um mês para o outro, a Baía de Guanabara começou a transbordar sobre Botafogo e Flamengo (...). A ironia suprema foi ver aqueles que sempre condenaram e abandonaram os moradores dos morros cariocas serem os primeiros a exigirem direitos de moradia e despejo dos seus antigos e, naquele momento, privilegiados habitantes. (Fred Coelho)

“Violinos cheios de aplicativos são cravados no alto dos morros cariocas. Violinos habitados por tecnologia pontuda assim telescópio com GPS ou sonar captador de movimentações marítimas bem piratas ou catastróficas ou simplesmente projeções de paisagens cinematográficas na atmosfera. Instalações de combate inusitado. (Fausto Fawcett)

DESTAQUES DA FLUPP

GLENN GREENWALD. O jornalista americano que divulgou as revelações de Edward Snowden fala dia 4, às 19h30m.

Marie Ange Bordas. A artista multimídia conversa com o alemão Uwe Timm dia 6, às 18h.

Favela tem memória. Exposição de HQs sobre famílias das comunidades vai até dia 8.

FRANCESCA HAIG. A escritora australiana conversa com o físico Rogério Rosenfeld dia 7, às 16h.

Alan Campbell. Criador do game GTA, o escocês fala sobre literatura com o escritor Leonardo Villa-Forte no dia 8, às 18h.