Cultura Livros Flip

Sexo e drogas esquentam primeira ‘Flip’ de Portugal

Folio movimenta Óbidos, que já pensa em mudar de nome para atrair turismo literário

Mia Couto, José Eduardo Agualusa e Sidarta Riberio discutem no Folio
Foto: Divulgação
Mia Couto, José Eduardo Agualusa e Sidarta Riberio discutem no Folio Foto: Divulgação

ÓBIDOS - “Ao ler uma passagem de um romance, o leitor tem como identificar se o escritor usou álcool, maconha, cocaína ou LSD? Ou só café com açúcar?”

A pergunta curiosa surgiu da plateia de uma das mesas de debates mais interessantes do primeiro Festival Internacional Literário de Óbidos (Folio) — evento inspirado na brasileira Flip, que se encerra domingo, na charmosa vila medieval que fica a 85 quilômetros de Lisboa. Era uma mesa que discutia a relação entre ciência e a literatura, com o escritor moçambicano (e biólogo) Mia Couto, o escritor angolano (e agrônomo) José Eduardo Agualusa e o neurocientista brasileiro (e escritor) Sidarta Ribeiro. Menos conhecido dos três, o diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autor do livro de contos "Limiar: uma década entre o cérebro e a mente", Sidarta foi o destaque da sessão, ao desmistificar a relação entre drogas e a literatura.

— Se fosse há cinco anos, eu diria que não, mas há pesquisas sendo desenvolvidas hoje em dia que podem identificar, sim, pelo cálculo da distancia semântica entre palavras-chave usadas num texto ou na fala, como “amor” ou “sexo”, por exemplo — respondeu Sidarta, que teve seu livro esgotado em todas as 11 livrarias do evento ao final da mesa de debates. — Cada droga tem um efeito específico, se o álcool relaxa em baixas doses, a canabis facilita a associação de ideias e a cocaína acelera o ritmo. Na produção literária, tudo já foi usado, do café a ayahuasca, mas cada uma terá um efeito distinto em cada pessoa. A questão é que estamos vivendo o reinicio da revolução psicodélica, uma mudança significativa de usos do que ja foi considerado apenas nocivo: hoje em dia, drogas como o ecstasy são usadas em tratamentos de depressão de veteranos de guerra, a canabis é usada em tumores. As drogas não são só uma questão moral ou politica. Aquilo que foi proibido durante muito tempo está voltando com força total como remédio. Em excesso, até a água mata.

O papo correu solto, Mia Couto admitiu que já tinha usado drogas, Agualusa lembrou que Baudelaire e Fernando Pessoa usaram bastante, até que um senhor , indignado, esbravejou: "Então vocês já legalizaram as drogas aqui, é isso? Não acreditam que alguém possa escrever em perfeito juízo?". Mia Couto assumiu o microfone: "Eu sempre tive perfeito juízo".

MESAS ANIMADAS POR BRASILEIROS

Reinaldo Moraes, Patricia Reis e Tatiana Salem Levy conversam sobre sexo e literatura Foto: Divulgação
Reinaldo Moraes, Patricia Reis e Tatiana Salem Levy conversam sobre sexo e literatura Foto: Divulgação

Já não era a primeira mesa do evento “animada” por brasileiros: um pouco mais cedo, Reinaldo Moraes e Tatiana Salem Levy dividiram uma conversa sobre sexo e literatura na “Tenda dos Autores” (a inspiracao na Flip é escancarada) com a portuguesa Patricia Reis. Autor da suruba épica “Pornopopeia“ e da coletânea de cronicas eróticas "O cheirinho do amor", o paulistano Reinaldo Moraes divertiu o publico com historias sobre suas tentativas de escrever cenas eróticas (de sexo a três, sexo anal e todas as variações possíveis) que não fossem cafonas e com sua tese de que a "literatura brasileira para na porta do quarto, não vai pra cama". Num dos poucos momentos mais sérios da mesa, a portuguesa Patricia Reis contou que num de seus livros, há uma cena de sexo grupal que sempre suscita a mesma pergunta dos leitores: "você participou de uma para escrever?"

— No mesmo livro tem uma cena de assassinato e ninguém pergunta se matei alguém para escrever. A mulher é sempre olhada de lado quando faz literatura erótica — pontuou ela, arrancando aplausos.

Não e mais surpresa que as feiras literárias em cidadezinhas charmosas tenham virado um filão econômico, além de tendencia cultural. A empatia do mote, a parceria de editoras, a possibilidade de custeio por isenção fiscal e o estímulo do turismo local são as principais justificativas para a explosão de festas literárias do tipo nos últimos anos. A Flip, em Paraty, que já acontece há 12 anos; a Flica, no Recôncavo baiano, que acontece há cinco anos em Cachoeira, que sequer tem uma livraria ou uma biblioteca; ou as feiras do Rio Grande do Sul, estado que já tem praticamente um festival de literatura por munícipio, são os principais exemplos brasileiros.

FOTOGALERIA: VEJA IMAGENS DO FESTIVAL

Inspirada no sucesso da iniciativa, a municipalidade de Óbidos está bolando este evento há cerca de três anos, num projeto de reestruturação da "marca" da cidade turística que inclui ate a troca do seu nome para "Óbidos, vila literária" — projeto de lei já em tramitação. Desde o dia 15 de outubro, quando começou o Folio, tudo foi transformado para que a cidade entrasse na categoria "Cidade literária permanente" da Unesco.

Há um hotel que se chama "The literary man", onde todas as paredes foram transformadas em estantes de livros à disposição dos hospedes; há livrarias montadas em caves de vinho, mercearias, museus, igrejas e galerias de arte. São, ao todo, 11 livrarias em locais inusitados, e não há uma pracinha de Óbidos que não tenha sido transformada em espaço de leitura.

— A que me dá mais alegria é a livraria que montamos dentro da mercearia. cada caixote custou um euro, são mil caixotes de livros entre as alfaces e castanhas, pois. Custou mil euros montar uma livraria. No começo, os comerciantes torciam o nariz, hoje adoram. Tudo isto vai ficar para a cidade depois, não vai durar só ate o fim do Folio — comentou José Pinho, dono da rede de livrarias "Ler devagar", em Portugal.

Apesar de acontecer numa cidadezinha bem menor do que Paraty, o Folio tem a diferença de pagar cachê aos autores que participam — nesta primeira edição, os custos de passagens dos autores brasileiros foram pagos pelo MinC, que liberou mil dólares para cada escritor — e cobra ingressos a preços módicos dos participantes (5 euros). Com cerca de 250 autores e ilustradores entre brasileiros, portugueses, moçambicanos, angolanos, caboverdeanos (alunos da universidade de Cabo Verde também participam dos debates e sessões literárias em tempo real, por telão) e cinco curadores (entre eles José Eduardo Agualusa, colunista do GLOBO), o evento tem ainda 36 espetáculos de música que acontecem por toda cidade, e toda noite — num deles, por exemplo, Mayra Andrade e Antonio Zambujo cantaram canções de Caetano Veloso) e 37 conferêcias, entre oficinas e "aulões" de literatura.

Para a edição do ano que vem, o objetivo é trazer autores de outras nacionalidades, como o italiano Umberto Eco, já confirmado.

* Mariana Filgueiras viajou a convite do festival