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Autora perdeu virgindade com o namorado da mãe

Versão cinematográfica de 'Diário de uma garota normal' estreia no Festival do Rio
Cena do filme 'Diary of a teenage girl' Foto: Divulgação
Cena do filme 'Diary of a teenage girl' Foto: Divulgação

RIO - Phoebe Gloeckner tinha 15 anos quando perdeu a virgindade com o namorado da mãe, um quase quarentão. O primeiro contato sexual aconteceu dias antes, quando ele a embriagou e passou as mãos em seus seios. Na casa da adolescente, em São Francisco, nos anos 1970, as coisas não iam bem: a mãe tinha problemas com álcool, fumava maconha e cheirava cocaína na frente dela e da irmã mais nova. Phoebe registrou tudo isso num diário, além de pensamentos suicidas, outros encontros sexuais e o uso excessivo de drogas injetáveis.

Décadas depois, compilou as anotações e publicou, em 2002, “Diário de uma garota normal”, que só agora chega às livrarias brasileiras, pela Faro Editorial. Os nomes dos envolvidos na história foram modificados: Phoebe virou Minnie; sua mãe, Charlotte; e o homem, Monroe. O livro também virou filme — “The diary of a teenage girl” (ainda sem título em português) —, com roteiro e direção da americana Marielle Heller. Premiado nos festivais de Berlim e Sundance, e com Bel Powley, Kristen Wiig e Alexander Skarsgård no elenco, o longa será exibido nesta quarta, às 18h45m, no Kinoplex São Luiz, como parte do Festival do Rio.

Hoje com 54 anos, Phoebe Gloeckner também é cartunista. O “Diário...” mistura prosa com graphic novel e tem seu padrinho e grande incentivador, o quadrinista americano Robert Crumb, como um dos personagens. “O livro é uma ficção baseada em experiências interpretadas, mas absolutamente nada do que está ali foi inventado”, define a autora em entrevista ao GLOBO.

Algumas análises argumentam que “Minnie” é vítima de abuso, outras até usam o termo estupro. Mas você questiona isso, dizendo que o pior daquele relacionamento é o teor “incestuoso”...

Os conceitos de certo e errado são construções humanas que nos ajudam a manter nossas vidas em ordem. Nada é inerentemente bom ou mau, não importa as experiências que temos. Não acho nada romântico na relação sexual entre uma jovem mulher e um homem mais velho. Na realidade, se pensarmos num relacionamento assim em termos de relação de poder, eles podem até parecer repugnantes, ridículos. Só que as pessoas fazem escolhas, então quem se importa?

Mas uma menina de 15 anos é capaz de fazer essa escolha?

Eu reconheço que, quando crianças estão envolvidas, a sua habilidade em dar consentimento racional ao sexo com uma pessoa mais velha seja questionada. A sociedade tende a assumir que uma criança ou um adolescente não desenvolveu esse discernimento, e, normalmente, proíbe esse tipo de relacionamento, sob o argumento de estar protegendo-a. Tais leis são benéficas, no fim. Fazem sentido.

Você ficou com medo da reação das pessoas “reais” retratadas no livro quando decidiu publicá-lo?

Sim, mas, se eu me preocupasse tanto, nunca teria escrito nada. Autocensura é o maior inimigo de um autor.

“Minha obra é uma tentativa de dar sentido à vida e expressar verdades que eu jamais conseguiria numa conversa”

Phoebe Gloeckner
Autora de 'Diário de uma garota normal'

No livro, você descreve a reação da sua mãe quando ela descobre seu caso com “Monroe”. Como é a sua relação com ela, hoje?

Durante muitos anos, foi tensa. Recentemente, parece que encontramos uma maneira de estar na companhia uma da outra de forma confortável.

E com “Monroe”? O que ele achou do livro e de toda a repercussão do filme? Vocês se veem?

Achei “Monroe” no Facebook anos atrás. Não nos falamos muito, até que ele viu o trailer do filme. Enviei-lhe uma cópia do livro. Disse-me que só conseguiu ler algumas páginas, porque tudo lhe pareceu extremamente real. É como se ele tivesse revivido aquele capítulo de sua vida. Há menos de duas semanas, fui a uma conferência de quadrinhos no estado de Maryland, perto de onde ele mora — num barco. Ele foi me ver todos os dias. Tivemos longas conversas. Alguns amigos meus sabiam quem ele era e me perguntaram: “Por que você não o matou?”. Mas não tenho ressentimento. Era necessário reencontrá-lo. Ele foi uma pessoa importante na minha vida, e eu não o via há quase 40 anos.

Considera seu livro uma ficção?

Tudo o que está lá aconteceu de verdade. O ofício de escrever um romance reside em decidir o que não deixar de fora. Todo artista fala de si, embora isso nem sempre fique evidente para o leitor. A vida é uma bagunça, e um livro tem estrutura. No caso de “Diário...”, foi uma questão de decidir que cenas ou pensamentos eu apresentaria na forma de texto ou desenho. Minha obra é uma tentativa de dar sentido à vida e expressar verdades que eu jamais conseguiria numa conversa.

Jornalistas já usaram palavras como “chocante” e “desconfortável” para descrever seu livro. Como se sente?

Usam esses adjetivos porque a história apresenta um ponto de vista que eles desconhecem em suas vidas. O que é bom, acho. Mas esse é o tipo de reação que eu recebo o tempo todo, mesmo em obras não autobiográficas. Não levo para o lado pessoal.

Você se considera feminista?

Não me considero nada.

Algumas pessoas veem feminismo no seu livro. Acham que “Minnie” tem controle sobre o corpo dela.

Discordo totalmente. Pode até haver mensagens feministas, mas a “Minnie” não tem controle algum.

O que achou do filme?

Amei. Precisei ver três vezes para não comparar com o livro — e com minha vida. As atuações são fenomenais. Faço, inclusive, uma ponta ( ela aparece numa cena, num bar ).

Algo a incomodou?

Sim, uma cena no começo. “Minnie” e “Monroe” ainda não transaram, e ela chupa o dedo dele de forma bastante sugestiva. A “Minnie” que conheço jamais teria feito aquilo.

Já recebeu relatos de gente que passou por experiências parecidas?

Muitos. Há meninas que dizem que o livro as ajudou a contar suas próprias histórias. Mas recebo cartas de homens também. Uma mulher de 90 anos me falou que contei a história dela, ainda que ela não tivesse tido experiências semelhantes. Mas, segundo ela, os sentimentos expressos nas páginas eram familiares.

VEJA ABAIXO PÁGINAS DO DIÁRIO DE PHOEBE GLOECKNER