Herói imcompreendido
Biografia revê trajetória do venezuelano Simón Bolívar, da infância rica à desilusão, nos últimos anos de vida, com a diluição da utopia da unidade latino-americana
Media 1,65 m, pesava 60 kg, tinha o "peito miúdo" e "pernas impossivelmente finas". A aparente fragilidade, porém, se dissolvia quando Simón Bolívar (1783-1830) começava a falar, com "um magnetismo que parecia apequenar homens mais robustos".
Durante 11 anos, esse homem culto, que podia citar Rousseau em francês e Júlio César em latim, liderou uma campanha militar sem precedentes na América Latina.
Enfrentando a umidade das selvas, o calor caribenho e o gelo dos Andes, Bolívar foi definitivo para libertar do jugo espanhol o que hoje são Colômbia, Venezuela, Panamá, Equador, Peru e Bolívia.
Em "Bolívar - O Libertador da América", lançado agora no Brasil pelo Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha, a historiadora e jornalista peruano-americana Marie Arana, 65, explica como o contexto em que nasceu o chamado "Libertador" e sua personalidade singular deram origem a uma utopia da América Latina unida e independente até hoje revisitada.
Também narra com dramaticidade e detalhe o modo como esse sonho se dissolveu ainda durante a vida de Bolívar, fazendo dele, ao final, um herói triste e decepcionado.
"Busquei uma história que pudesse contar o máximo sobre a América Latina, que reunisse questões de identidade e de história e revelasse por que nos transformamos no que somos. Bolívar se encaixou perfeitamente nisso", diz Arana à Folha, por telefone.
Membro do conselho da Biblioteca do Congresso, em Washington, Arana utilizou documentos sobre Bolívar recolhidos nos Estados Unidos e na América Latina.
"Tive a sorte de ele ter sido um personagem amplamente documentado. Bolívar e seus companheiros de campanha militar escreveram muito, pintores o retrataram, então sabemos desde fofocas de bastidores das batalhas até como era sua aparência."
MENINO RICO
Arana relata como Bolívar cresceu numa família "criolla" (de origem europeia, mas nascida na América) em uma Caracas já descontente com o controle espanhol. Seu pai era um dos homens mais ricos do país, e o garoto já nascera proprietário de casas na cidade e no campo, terras cultiváveis, portos, minas e escravos.
De comportamento rebelde, passou a adolescência brincando com filhos de escravos e teve na negra Hipólita, ama-de-leite destinada a cuidar dele, uma espécie de segunda mãe.
"Bolívar foi consciente da questão racial desde cedo. Por isso não teve dúvidas de arregimentar escravos para seu exército. Porém, essa mesma decisão levou-o a refletir de forma negativa sobre o futuro do continente. No fim, ele passou a acreditar que a desigualdade racial criaria um desequilíbrio perigoso para a região."
Após as independências, Bolívar assistiu com tristeza e raiva à divisão política entre seus comandados. Tentou de forma vã conter a fragmentação do sonho. Começou a defender posturas mais autoritárias e a dizer que "servir a uma revolução era arar no mar". Morreu desiludido e tuberculoso, aos 47, em Santa Marta, no litoral colombiano.
"Se tivesse vivido mais, creio que seu destino teria sido o exílio e um final de vida de depressão e encerramento, como ocorreu com San Martín", diz Arana, referindo-se ao prócer argentino, que passou seus últimos tempos em Paris.
Mais frustrado ficaria, no entanto, se soubesse como seu legado seria mal-interpretado no futuro.
"De Fidel a Pinochet, seu discurso foi distorcido à esquerda e à direita. Bolívar jamais estaria de acordo com a interpretação que foi feita por Hugo Chávez e seus seguidores. Quem usa o termo 'bolivariano' para falar de um socialismo latino-americano não sabe o que está dizendo. O debate sobre o pensamento de Bolívar tem sido marcado pela ignorância."