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‘Vidas secas’ ganha versão com ilustrações de Guazzelli e roteiro de Arnaldo Branco

Obra-prima de Graciliano Ramos é renovada em HQ

A cena com a cachorra Baleia, um dos momentos mais marcantes da obra de 1938
Foto: Reprodução
A cena com a cachorra Baleia, um dos momentos mais marcantes da obra de 1938 Foto: Reprodução

RIO — Depois de surgir fitando Fabiano “com um objeto esquisito na mão”, Baleia recebe um close nos olhos, enquanto ocorre um estrondo — bam! — e uma espécie de bola de fogo, avermelhada, surge em sua direção. Em seguida, a silhueta da cachorra se afasta em direção à mata, “sem distinguir as pernas”, uma sede horrível queimando-lhe a garganta. Late, sente o morro se distanciar e reflete, assustada, sobre sua própria impotência, ao mesmo tempo em que a escuridão vai tomando a tela, até que reste apenas um borrão preto, enquanto ela delira com um mundo cheio de preás, “gordos, enormes”.

— A cena da Baleia é muito triste e impactante — conta Arnaldo Branco, roteirista da recém-lançada versão em quadrinhos de “Vidas secas” (Galera Record), de Graciliano Ramos, com ilustrações de Eloar Guazzelli. — Quando ela voltou para mim, já com o desenho do Guazzelli, eu chorei.

CORTES SOFRIDOS

Clássico da literatura brasileira, “Vidas secas” foi lançado em 1938 e até hoje comove e impressiona com a história de uma família de retirantes — Fabiano, Sinhá Vitória, o Menino Mais Velho, o Menino Mais Novo e Baleia — fugindo da seca em meio à aridez do sertão e da caatinga.

— Por conta desse trabalho, reli o livro umas quatro vezes e continuo maravilhado com ele. A escrita de Graciliano Ramos é precisa, cirúrgica. Ele combina forma e conteúdo com brilhantismo — afirma Guazzelli, que já havia assinado, em 2014, o roteiro da graphic novel de “Grande sertão veredas”, de Guimarães Rosas, com desenhos de Rodrigo Rosa. — Já tinha sentido o peso de lidar com uma obra-prima. Mas acredito muito no valor dessas adaptações.

A obra já teve uma notória adaptação feita por Nelson Pereira dos Santos, em 1963, num filme que é considerado um marco do Cinema Novo.

— O cinema exige uma linguagem e uma narrativa específicas, enquanto os quadrinhos trazem espaço para negociação. É possível, por exemplo, criar uma sequência visual toda sem diálogos, como uma pintura — explica Branco, que também adaptou outros clássicos para HQ, como “Vestido de noiva” e “Beijo no asfalto”, de Nelson Rodrigues. — Nesses casos, porém, como foram peças de teatro, já existiam marcações de cena e diálogos separados, como uma espécie de guia, o que não aconteceu com “Vidas secas”.

Por isso, o roteirista confessa que sofreu muito no começo do trabalho, ao ter que cortar trechos imensos do livro para a adaptação:

— Me senti muito mal nesse papel de açougueiro, cortando pedaços de algo perfeito. Tinha a impressão que estava sonegando informações importantes. Só depois é que sosseguei e busquei um ritmo certo para essa versão, sem comprometer o original.

Para Guazzelli restou outro papel, igualmente ingrato: criar imagens para um trabalho tão conhecido sem repetir o que já havia sido visto no filme de Nelson Pereira dos Santos.

— Evitei ver o filme para me concentrar na linguagem dos quadrinhos, que alguém já disse ser o cinema popular. Na verdade, “Vidas secas” é sobre a paisagem, sobre o ambiente hostil que ameaça devorar e erodir os personagens — conta ele. — Desde o começo, sabia que não poderia criar um mundo coloridinho porque isso não teria nada a ver com o cenário pensado por Graciliano. E também optei por borrar o rosto de todos na maior parte do tempo. Deixei as expressões para serem imaginadas e sentidas pelo leitor. É o sonho que o quadrinho pode trazer.