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O ataque de “um naco de sol” sobre o Japão: 70 anos de Hiroshima
PublishNews, Roney Cytrynowicz, 04/08/2015
A memória da destruição causada pelo ataque atômico nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki há 70 anos deve mobilizar nesta semana muitas celebrações

A memória da destruição causada pelo ataque atômico nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki há 70 anos, nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, deve mobilizar nesta semana muitas celebrações e atos em defesa da paz e do banimento das armas nucleares, causas que permitem renovadas promessas sem conteúdo e sem compromisso. Nestas horas, ler ou reler o livro Hiroshima, do jornalista norte-americano John Hersey, permite que, 70 anos depois, nos aproximemos do instante da catástrofe atômica, do relato dos sobreviventes que testemunharam uma destruição jamais vivenciada antes pela Humanidade (em tão poucos instantes e nesta escala), e dos efeitos irremovíveis, por décadas, sobre a saúde das pessoas que ficaram expostas à radiação, algumas delas com doenças incuráveis – além das memórias e dos pesadelos.

O livro é, em sua maior parte, uma reportagem publicada originalmente em 1946 na revista norte-americana The New Yorker, a partir de um relato que John Hersey escreveu naquele ano em Hiroshima, acompanhando a trajetória de seis diferentes sobreviventes do ataque nuclear. No mesmo ano saiu em livro pela Alfred A. Knopf. Uma segunda parte é uma reportagem escrita 40 anos depois do ataque contando as consequências da bomba na vida dos mesmos seis sobreviventes. O livro ampliado saiu em 1986 e é esta a edição que a Companhia das Letras lançou em português em 2002. Hiroshima teve inúmeras edições nos EUA, incluindo as editoras Bantam e Penguim.

A publicação da reportagem e, em seguida, do livro tiveram forte impacto especialmente sobre a opinião pública dos EUA. Hersey, sem ingenuidade, não discute as razões políticas e militares norte-americanas e japonesas, a disposição dos EUA de efetuar um ataque assim quando já bombardeava maciçamente civis japoneses nas grandes cidades, a disposição do Japão em não se render a qualquer custo. Imperialismo, Pearl Harbor, a ciência atômica, o Imperador, estes não são os seus temas. Hersey, que passara a guerra como correspondente das revistas Time e Life (e publicou o romance A Bell for Adano em 1944), quis narrar a destruição e a sobrevivência em um pós-guerra, entre os Aliados, que celebrava a liberdade e a vitória e não olhava para as vítimas, ainda mais as dos países inimigos.

Hiroshima é certamente um dos livros de história e política que maior impacto causou sobre os leitores no século 20. Sua leitura ainda provoca profundo impacto ao leitor de hoje e mostra a capacidade deste texto em narrar a catástrofe e nos colocar dentro do ataque em 1945, mesmo depois de décadas de incontáveis imagens. O texto chega a ser seco, mas é humanista e cheio de envolvimento e compromisso com as vítimas, os sobreviventes, as pessoas, suas dores e suas histórias.

Um das seis pessoas cuja história é contada é o reverendo Kiyoshi Tanimoto. Escreve Hersey sobre o momento do ataque e da destruição: “O reverendo se perguntou como um céu silencioso poderia ter causado tanta destruição: não se deixaria de ouvir nem mesmo uma pequena esquadrilha, voando alto. As casas das redondezas ardiam em chamas, e, quando gotas de água imensas, do tamanho de bolinhas de gude, começaram a cair, ele imaginou que provinham das mangueiras que os bombeiros estariam usando para combater os incêndios (Na verdade eram gotas de uma mistura condensada que caíam da turbulenta torre de poeira, calor e fragmentos de fissão que já se erguera no céu, milhares de metro acima de Hiroshima)”.

O absurdo, a incongruência, entre a inédita dimensão da destruição causada em poucos segundos e a falta de uma causa conhecida (como eram as dezenas ou centenas de aviões bombardeiros, milhares de bombas e explosões diárias) causou uma angustiante incredulidade e estranheza. As pessoas simplesmente não entendiam o que estava acontecendo (a destruição causada por bombas conhecidas era sinistramente “compreensível” do ponto de vista da experiência passada). Não havia, portanto, registro deste novo tipo de destruição nos códigos da cultura e história humanas. Os médicos não sabiam como tratar os feridos. O governo japonês demorou para entender de que tipo de arma se tratava. Como em outras situações extremas de guerra, as trincheiras, os ataques com gás e as matanças na zona de ninguém da Primeira Guerra Mundial ou ainda (sem comparar) o Holocausto na Segunda Guerra Mundial, o código conhecido (da experiência humana e) das palavras não dava conta de conceber e descrever minimamente o que estava acontecendo.

A destruição, portanto, foi de tal ordem inaudita que era preciso reinventar a possibilidade de compreender, contar, registrar, escrever. Jornalismo literário, literatura de não-ficção, jornalismo de autor, ensaio, novo jornalismo; no posfácio da edição brasileira, Matinas Susuki Jr. discute qual é o gênero do texto de Hersey.

Segundo o reverendo Tanimoto, ao tentar contar o que ele viu, parecia que um pedaço do próprio sol despencara, escreve Hersey: “Então um imenso clarão cortou o céu. O reverendo se lembraria nitidamente de que o clarão partiu do leste em direção ao oeste, da cidade em direção às montanhas. Parecia um naco de sol”. O clarão e o barulho da explosão foram percebidos a quase 32 km de Hiroshima, mas na própria cidade praticamente não se ouviu nada.

Dos 245 mil habitantes de Hiroshima, 100 mil morreram no próprio ataque ou pouco depois dele. Outros 100 mil ficaram feridos. Um total de 62 mil dos 90 mil edifícios foram destruídos e seis mil sofreram danos sem possibilidade de reparo. Lápides de mármore foram deslocadas no cemitério e a pista de concreto de uma ponte foi arrancada. Em lápides de granito a 342 m do centro da explosão fundiu-se a mica, cujo ponto de fusão é 900 graus. A quase 4 km do centro queimou uma Cryptomeria japônica, árvore que carboniza a 240 graus. No centro da cidade o calor da bomba atingiu no chão seis mil graus. Pesquisadores japoneses avaliaram que seria necessário um abrigo de concreto de 125 metros de espessura para proteger uma pessoa da radiointoxicação.

Diante desta escala de destruição, a descrição seca e direta do horror por Hersey: “Alguns tinham as sobrancelhas queimadas e pedaços de pele soltos, pendendo das faces e das mãos. Outros, zonzos de dor, erguiam os braços, como se carregassem alguma coisa com as duas mãos. Alguns vomitavam sem parar de andar. Muitos estavam nus ou envoltos em farrapos. Em alguns corpos despidos as queimaduras acompanhavam o contorno das camisetas e suspensórios e, na pele de algumas mulheres, o das flores dos quimonos (o branco repeliu o calor da bomba, enquanto as roupas escuras o absorveram e o conduziram para a pele). Muitos feridos apoiavam parentes que se achavam em condições piores. Quase todos caminhavam de cabeça baixa, olhando para a frente, em silêncio, absolutamente inexpressivos”.

Ao recordarmos os 70 anos dos ataques nucleares em Hiroshima e Nagasaki é, portanto, desta destruição que estamos lembrando.

Um dos efeitos mais estranhos da bomba, escreve Hersey, é que “por toda parte estendia-se um tapete verde, viçoso, otimista, que brotava até mesmo dos alicerces das casas em ruínas. O capim já escondia as cinzas, e flores silvestres despontavam em meio ao esqueleto da cidade. A bomba não só deixara intatos os órgãos subterrâneos das plantas como os estimulara. Por toda parte havia centáureas, iúcas, quenopódios, ipoméias, hemerocales, beldroegas, carrapichos, gergelim, capim e camomila (...) Parecia que o mesmo avião que jogara a bomba soltara também uma carga de sementes de sene”.

Para concluir, como uma oração universal, um hai-kai de Tomoko Narita Sabiá, repondo alguma lógica no que devemos esperar, sempre, ao olhar para o céu (em As quatro estações. Antologia do Grêmio Haicai Ipê, Massao Ohno Editor, 1991. Agradeço à sra. Yuli Fujimura pelo empréstimo desta bela edição – ela coordena no Hospital Santa Cruz o processo de check-up anual realizado pelos sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki que vivem em São Paulo):

Chuva fina e fria.
No caminho da pedreira
Chora o bambual

.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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