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Em livro e exposição, Loredano reúne desenhos do Rio inspirados em caminhadas pela cidade

‘Rio, papel e lápis’ retrata lugares que foram testemunhas ou vítimas de transformações na história carioca
Praça XV e Arco do Teles Foto: Coleção Cássio Loredano/Instituto Moreira Salles
Praça XV e Arco do Teles Foto: Coleção Cássio Loredano/Instituto Moreira Salles

RIO - Cássio Loredano nasceu no Rio, em 1948, mas com menos de um ano já estava na estrada. Filho de um oficial de Cavalaria, passou a infância mudando-se com a família por Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo. Era o único carioca de oito irmãos. Só voltou à cidade natal em 1972, aos 24 anos, para fazer parte da equipe que lançou o semanário “Opinião”. Jornalista desde 1968, havia feito de tudo um pouco em redações e gráficas, trabalhando como revisor, redator, repórter, diagramador, desenhista. No retorno ao Rio, passou a se dedicar mais à caricatura. E redescobriu a cidade em longas caminhadas.

— Sou um andarilho, gosto de circular pela cidade a pé ou de condução. Às vezes tomo o ônibus e vou até o ponto final, para ver como é lá — diz Loredano, que recorda a sensação de reencontrar a cidade natal. — Quando cheguei aqui vi cada coisa... Esses beirais pintados que ainda existem na Gamboa. As calçadas de pedra. O Beco dos Barbeiros. O Beco das Cancelas. A cidade que sobreviveu, essa cidade adorável.

Cássio Loredano no Arco do Teles Foto: Ana Branco
Cássio Loredano no Arco do Teles Foto: Ana Branco

Para marcar os 450 anos do Rio, Loredano se dedicou desde o ano passado a uma empreitada inédita. Caricaturista com passagem por alguns dos principais veículos do Brasil e da Europa, especialista em retratar políticos e escritores, ele passou os últimos meses desenhando pela primeira vez alguns de seus lugares preferidos da “cidade adorável”. O resultado está no livro “Rio, papel e lápis”, que será lançado no próximo sábado, dia 8, às 18h, no Instituto Moreira Salles (IMS), na Gávea, onde no mesmo dia será inaugurada uma exposição com algumas das obras, incorporadas ao acervo da instituição.

A origem de “Rio, papel e lápis” está na coluna de Loredano no Prosa. Em janeiro de 2014, em vez das tradicionais caricaturas de escritores, ele publicou um desenho das fachadas no quarteirão da Rua do Ouvidor onde fica a livraria Folha Seca, entre a Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores e a Rua Primeiro de Março, para celebrar o aniversário de 10 anos da loja naquele endereço. Flávio Pinheiro, superintendente executivo do IMS, sugeriu que Loredano, consultor da área de iconografia do instituto, fizesse um livro a partir daquela ideia. No dia seguinte, o cartunista já tinha uma lista de 50 lugares que gostaria de desenhar. O livro reúne 62 desenhos, todos apresentados por textos do autor.

Real Gabinete Português de Leitura Foto: Coleção Cássio Loredano/Instituto Moreira Salles
Real Gabinete Português de Leitura Foto: Coleção Cássio Loredano/Instituto Moreira Salles

O percurso de “Rio, papel e lápis” é o das andanças de Loredano. Começa na igrejinha de Nossa Senhora da Cabeça, escondida no fim da Rua Faro, no Jardim Botânico, e termina na ponte dos Jesuítas, em Santa Cruz, no extremo oposto do município. O protagonista, porém, é o Centro, esquadrinhado em suas praças, becos e monumentos. Estão lá a Biblioteca Nacional, o Real Gabinete Português de Leitura, o casario da Avenida Passos, a Pedra do Sal. Lugares que Loredano aprendeu a amar em suas caminhadas e que continuaram em sua mente nos 14 anos que passou na Europa, a partir de 1975, vivendo em Portugal, Alemanha, França, Itália, Suíça e Espanha, publicando caricaturas em veículos como “Frankfurter Allgemeine”, “Libération”, “La Repubblica” e “El País”.

— Quando morei no exterior, a cidade no meu córtex era o Rio do Centro e da Lapa, o coração da antiga capital do Império e da República. O livro tem pouco da Zona Sul e nada da Barra. Sei que tem gente que nasceu na Barra e deve amar aquilo. Mas eu nasci na primeira metade do século passado. Não gosto.

MAM com Outeiro da Glória ao fundo Foto: Coleção Cássio Loredano/Instituto Moreira Salles
MAM com Outeiro da Glória ao fundo Foto: Coleção Cássio Loredano/Instituto Moreira Salles

Loredano escolheu como epígrafe um trecho da música “Estrada de Canindé”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira: “Oiando coisa a grané/ coisas que pra mó de vê/ o cristão tem que andá a pé”. Os desenhos seguem a perspectiva do pedestre. A Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, por exemplo, é retratada do ponto de vista de quem passa pela Rua do Russell, com a muralha de pedra em primeiro plano. A Igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso aparece abraçada pelo que restou da Ladeira da Misericórdia, antigo acesso ao Morro do Castelo, com uma árvore ao fundo. O detalhe ganha sentido no texto de Loredano: caminhando por ali, ele costuma ver um homem que mora sob aquela árvore. “Da primeira vez, tomamos um susto ambos, nos demos um boa-tarde canhestro e desci encabuladíssimo”, escreve.

— Este é um livro sobre o que se vê da rua, na escala do homem a pé. Para ver certas coisas, você tem que andar — diz Loredano, que passou a olhar a cidade com ainda mais atenção desde que começou a desenhá-la. — Um dia, indo para Vila Isabel, passei pelo Hospital Gaffrée e Guinle, na Tijuca, e fiquei espantado. Nunca tinha reparado nele. Voltei no dia seguinte, e ele entrou no livro.

Restaurante Albamar, na Praça XV, depois da demolição da Perimetral Foto: Coleção Cássio Loredano/Instituto Moreira Salles
Restaurante Albamar, na Praça XV, depois da demolição da Perimetral Foto: Coleção Cássio Loredano/Instituto Moreira Salles

O desenhista andarilho não sabe dirigir e deixa clara no livro sua aversão ao automóvel. “Para circularem estas células cancerígenas no organismo urbano, abriu-se esta boçalidade, a avenida Presidente Vargas”, escreve sobre o desenho da Candelária, mostrada de costas, do ângulo de quem vem da Central. Um alvo recorrente é o Elevado da Perimetral, descrito como “excrescência urbanística”. Como que animado pela demolição do viaduto, em 2014, Loredano capta vários ângulos da Praça XV: a estátua de General Osório, o chafariz de Mestre Valentim, a estação das barcas. O desenho do restaurante Albamar, retratado a uma distância que ressalta o espaço vazio a seu redor, convida o leitor a imaginar como seria o cenário hoje se o antigo Mercado Municipal não tivesse sido derrubado para a construção do Elevado, nos anos 1950.

— Lembro minha emoção quando vi pela primeira vez a estação das barcas desimpedida. Era o Paço recuperado em sua amplitude original — diz Loredano, que contrasta as críticas ao carro com um tratamento reverencial do transporte público, como nos traços elegantes das gares de Marechal Hermes e Engenho de Dentro.

Em alguns casos, Loredano registra as construções como se fossem testemunhas ou vítimas das transformações do Rio. A Igreja de Santa Luzia ficava à beira-mar, com o Morro do Castelo ao fundo, mas, com a expansão da cidade, “ficou enviesada e perdida no caos automobilístico” das avenidas Presidente Antônio Carlos e Presidente Wilson. Vascaíno, o autor passou cinco dias “bordando” a fachada do estádio de São Januário e incluiu ainda as sedes de Fluminense e Botafogo (a do Flamengo “não se vê da rua”, justifica). Mas o templo histórico do futebol na cidade, encolhido pelas reformas para a Copa do Mundo de 2014, não ganhou um desenho: é mencionado de passagem como “o falecido Maracanã”.

Confeitaria Colombo Foto: Coleção Cássio Loredano/Instituto Moreira Salles
Confeitaria Colombo Foto: Coleção Cássio Loredano/Instituto Moreira Salles

Loredano é também um historiador da caricatura brasileira, autor de livros sobre desenhistas como Nássara, Guevara e Figueroa, grandes nomes da imprensa carioca da primeira metade do século XX. Organizou várias obras de J. Carlos (1884-1950), estrela de revistas da época como “O Malho”, “Fon-Fon” e “Careta”, e escreveu sobre ele o livro “O bonde e a linha” (Ed. Capivara). Para o autor, J. Carlos soube capturar o cenário carioca.

— J. Carlos escaneou o Rio. Ele não se preocupava em registrar a cidade, ela aparecia como o pano de fundo da vida moderna. E cenário de piadas. A piada envelheceu e ficaram os desenhos geniais — diz Loredano, citando exemplos de artistas que retrataram outras cidades: Carla Caffé em São Paulo, Saul Steinberg em Nova York e Alfredo Gonzalez e Jorge Arranz em Madri.

Foi na Espanha, em Barcelona, onde viveu nos anos 1980, que Loredano desenhou uma rua pela primeira vez. Era um trecho do Passeig de Gràcia conhecido como “quarteirão da discórdia” por abrigar quatro construções de diferentes arquitetos do modernismo catalão, entre elas a Casa Batlló, de Gaudí, e a Casa Amatller, de Josep Puig i Cadafalch, onde fucionava o Centro de Estudos Brasileiros. Ele não vê diferença entre desenhar uma pessoa e um prédio.

— A diferença é a mesma entre caricaturas de duas pessoas. Depois de Freud, a caricatura deixou de ser um “retrato exagerado”. O sujeito pode ter uma nariganga, mas o mais expressivo pode ser o olhar ou um gesto. A caricatura é uma interpretação.

“Rio, papel e lápis” é uma interpretação da cidade. Realizados a partir da observação, também de fotos de arquivo e de outras feitas pelo fotógrafo Aílton Silva para este projeto, os desenhos às vezes têm traços ondulantes (“meio bêbados”, brinca Loredano) que criam um efeito curioso. Há comentários visuais, como no desenho detalhado da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, “de beleza imutável”, e sua vizinha, a Ordem Primeira, que aparece como uma silhueta, pois foi desfigurada ao longo dos séculos. Ou no prédio da Fiocruz, em Manguinhos, em que a fachada vai como que se dissolvendo: “você faz mil tijolos e bota um etc”, escreve Loredano.

— A fotografia liberou a mão do artista para questões filosóficas, de tempo e espaço. Antes o artista tinha que pintar o retrato do rei, agora faz-se uma foto. O artista tem que fazer outra coisa. De preferência, bonita e inteligente.