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Os livros de cordel vivem na Praça da Sé
PublishNews, 09/06/2015
Roney Cytrynowicz visitou uma banca de revistas especial no Centro de São Paulo

Na Praça da Sé, próximo ao Centro Cultural da Caixa, a Banca Central é especializada em livros-folhetos de literatura de cordel. Aos sábados, sanfoneiros e músicos reforçam a vizinhança da banca como um pequeno território cultural nordestino no centro da capital paulista.

Entre a resistência cultural e o comércio, a Banca Central vende os títulos da editora Luzeiro -- em formato um pouco maior que o tradicional e capa colorida -- e uma seleção de cordel do Ceará, no formato tradicional. Os circuitos culturais da literatura de cordel são intrigantes. Em meio às centenas de títulos oferecidos, as histórias tradicionais, muitas de origem medieval e ibérica, estão mescladas a histórias mais modernas do Nordeste e temas atuais, revelando a singularidade do cordel, uma estrutura ao mesmo tempo rígida e maleável, que reproduz tradições e mitos e olha para o novo e o atual.

Foi lá que encontrei O misterioso sumiço da coleção de cordel, de João Gomes de Sá, a história do sumiço de uma biblioteca, escrita no melhor gênero das tramas em que livros e bibliotecas são o tema principal, neste caso narrada pelo detetive Olho de Onça em torno do misterioso desaparecimento da coleção de folhetos de cordel do poeta e repentista Zé Clemente. Para concluir o curso à distância de detetive amador no Instituto Ocular, Olho de Onça resolve investigar o caso e descobre que o “crime” foi arquitetado por vários personagens da cidade para distribuir a coleção entre as crianças e incentivar a leitura... e a história tem uma inesperada reviravolta no final.

Foi lá também que encontrei O dinheiro e o testamento do cachorro, de Leandro Gomes de Barros, hilariante história de um inglês que queria enterrar seu cachorro no cemitério e, para isso, inventou um testamento do animal com doações ao vigário, ao bispo... A história poderia ter sido escrita em 2015, mas o autor viveu entre 1865 e 1918!

As traduções e transcriações literárias, históricas e geográficas do cordel são o tema de Matrizes impressas do oral. Conto russo no sertão, da professora Jerusa Pires Ferreira (Editora Ateliê). Em vários capítulos, Jerusa investiga percursos que unem a literatura popular da Rússia ao cordel do Nordeste brasileiro. O primeiro é um conto popular russo medieval, a lenda do Pássaro de Fogo (celebrizada por Stravinsky), que aparece no cordel A princesa Maricruz e o Cavaleiro do ar, de Severino Borges da Silva. O conto russo integrou várias compilações e edições e chegou ao Brasil em coleções de livros infantis do tipo “Os mais belos contos”, das editoras Vecchi e Quaresma, certamente lidas pelo poeta nordestino. O outro cordel estudado é o Romance do Príncipe Guidon e o Cisne Branco, cordel de Severino Milanês da Silva, recriação de um conto popular e um poema de Púschkin, o Czar Saltan, do século 19.

Jerusa refaz com precisão o percurso entre estas várias recriações da história e suas linguagens, códigos literários e épocas, tecendo o nexo entre suas edições e seus leitores. Ela revela “a força de sequências inteiras que migram de um texto a outro fazendo aportar elementos persistentes, nessa espécie de ‘grande texto’ que é a série aberta, na qual se vão reunindo folhetos, gravuras, imagens dicções”. É o mito em suas encarnações reais. São relatos da idade do mundo, narrativas ancestrais, memórias imemoriais em sua precisa e datada recriação, escrita e edição.

Ao estabelecer estes circuitos, “não se está pensando em inconsciente coletivo, mas em coletividades concretas que vão interpretando e realizando linguagens imemoriais e já prototipadas através da transformação pela voz de seus poetas. É o ancestral em novos corpos”. A ideia de matriz, neste caso, afasta as de arquétipo ou originalidade e espontaneidade da criação popular com um valor em si mesmo.

Diferentemente disto, a narrativa popular passa por ajustes e recriações, a história e o presente interagindo com os conteúdos míticos, escreve Jerusa: “Aqui e ali o encantamento vai também tentar corrigir a realidade, na medida em que isto seja preciso, para o ajuste das expectativas, amenizando das insatisfações etc. Como naquela antiga Rússia, o mundo desses contos manifesta os índices de insatisfação na vida social, lugar por onde passam as reclamações, de quem não as pode fazer”.

Assim, os conteúdos míticos, longe de fugir da realidade, criam as categorias para compreendê-la, lidando com os momentos de transformação social e temas como a riqueza, o trabalho, a justiça, o direito, a propriedade, a liberdade, o grupo social, o tempo, a mudança e suas causas, o destino, a morte, vistos ao mesmo tempo como fatos sociais e categorias cósmicas.

Um dos traços marcantes do cordel e dos contos populares é a centralidade da oralidade e da visualidade na narrativa, o texto impresso como um suporte de uma expressão que apela a vários sentidos. Os versos do cordel são também para ler em voz alta, para contar, encenar, brincar, ler com gestos – uma forma de leitura distante do modelo do silêncio e da disciplina do corpo de uma outra história da leitura.

Na Banca Central, na Praça da Sé, a poucos metros do Marco Zero de São Paulo, fica esta bordinha de Sertão, franja de fronteira estendida no espaço e no tempo de épocas, coloniais, medievais, ibéricas, ancestrais, imemoriais. Próximo a uma catedral neogótica dos anos 1940, de pregadores de Bíblia na mão que circulam pela praça, de efêmeros saltimbancos e menestréis urbanos, a menos de um quilômetro da Liberdade e da memória da escravidão e da forca ou da agitação da vizinha Galeria do Rock – justaposições emblemáticas da cidade de São Paulo no espaço e no tempo, fazendo conviver o instantâneo e o imemorial.

A Banca Central oferece edições recentes, contemporâneas, alguns títulos incorporando temas da atualidade do País e do mundo. Evidenciando a força desta cultura impressa e mostrando como seu suporte em papel é forma duradoura de circuitos que recriam culturas milenares, mas que ao mesmo tempo falam a leitores presentes e suas questões atuais, de transformação, de liberdade, de justiça, dando voz e narrativa a personagens e grupos que ganham e renovam, assim, sua identidade e presença.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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