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Onde estão os livros sobre a FEB aos 70 anos do fim da Guerra?
PublishNews, 26/05/2015
Ao se completarem 70 anos do fim da guerra, os leitores em português mereciam mais livros e mais leituras sobre este episódio central da história do século 20

Foi a estreia de um filme longa-metragem de ficção e não o lançamento de um livro de história ou um romance o destaque cultural que evocou a participação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial, neste mês em que se celebraram em todo o mundo os 70 anos do final da guerra e da derrota da Alemanha nazista.

A estrada 47, do diretor Vicente Ferraz, é um filme sobre os pracinhas que, junto ao exército dos EUA, enfrentaram na Itália as tropas alemãs. É uma obra de ficção, mas construída a partir de minuciosa pesquisa histórica e certamente também da leitura dos grandes romances e testemunhos sobre a FEB, entre eles Guerra em surdina (Cosac Naify), de Boris Schnaiderman, Mina R, de Roberto Melo e Souza, Um médico brasileiro no front (Imesp/Narrativa Um), de Massaki Udihara, e alguns outros poucos livros que se tornaram referência de narrativas que não perdem de vista a dimensão pessoal do horror vivido pelo soldado brasileiro.

Além de ser um filme brasileiro de guerra – a primeira obra de ficção no cinema sobre a FEB –, A Estrada 47 recria com verossimilhança e delicadeza a atmosfera e o cotidiano dos pracinhas. Por meio da figura de um correspondente de guerra, o filme trata do descrédito e da incredulidade, já na época, de que brasileiros estavam no front da Segunda Guerra Mundial e enfrentavam (vitoriosamente) soldados nazistas. A cena da destruição da câmera fotográfica, ao final, é uma dura metáfora de um episódio que, mais do que esquecido, foi apagado da memória do País, confundindo-se injustamente a lembrança da FEB e da luta dos pracinhas com alguma celebração militarista ou apologia à ditadura de Getúlio Vargas. O filme também aborda com equilíbrio os temas controversos que envolvem esta história, entre eles o despreparo e a efetivamente pequena participação do ponto de vista militar (e nem poderia ser diferente).

Existem muitas dimensões nesta história. Em um capítulo sobre a batalha para tomar Monte Castelo, Boris Schnaiderman, que serviu na FEB, escreveu em Guerra em surdina páginas comoventes sobre a solidão do soldado frente à montanha a ser conquistada – tema retratado no filme de Vicente Ferraz –, o medo e a estranha comunhão com a natureza em meio a duros combates. “Era difícil aquela tentativa de fuga ao domínio que a montanha exercia sobre cada um de nós. Atravessar a ponte significava, sobretudo, voltar aos contatos humanos, à alegria e à tristeza, à miséria e à degradação, ver novamente o reflexo da grandeza e dos absurdos da desumanidade que sucediam na guerra, ser de novo uma criatura como os demais e não alguém possuído pelo espírito da montanha, que calcula tiros sobre ela e dela recebe a sua porção diária de estilhaços de granada” (Guerra em surdina, Cosac & Naify, 4ª edição).

Em Mina R (Ouro Sobre o Azul), Roberto Mello e Souza narra o combate milimétrico e mortal entre o soldado e as minas terrestres – também tema central do filme de Vicente Ferraz –, entre elas a indecifrável “R” (Mina R, Ouro sobre Azul, 3a ed.). Guerra em surdina e Mina R tiveram novas edições recentes e muito bem cuidadas pelas editoras Cosac & Naify e Ouro sobre Azul, respectivamente.

Massaki Udihara, médico que serviu como tenente de infantaria, explora em seu diário as infinitas nuances da natureza, seus silêncios, suas cores, sua beleza, a vida previsível dos ciclos do tempo que não dependem da ação humana. Isto em meio à dolorosa e sinistra monotonia gelada dos buracos-trincheiras no qual os solados viviam sob espera interminável e bombardeios ininterruptos. “Se eu pudesse abolir a noite, se teria conseguido a melhor coisa da guerra. A noite oculta tudo. Nada se vê e a escuridão facilita tudo. Inclusive ver o que não pode ser visto. Não sei como a imaginação consegue produzir tantos fantasmas”, escreveu ele em dezembro de 1944 (Um médico brasileiro no front, Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil/Imprensa Oficial/Narrativa Um).

Livros como estes, de memória da FEB, mereciam maior difusão e reconhecimento ao retratar, como o filme, o cotidiano e a experiência pessoal dos soldados, que, na guerra, ganham dimensão excruciante. Compõem uma literatura humanista que passa longe de rótulos como patriotismo e heroísmo – embora estes três autores jamais questionem a presença da FEB na luta contra o nazi-fascismo. Uma das cenas mais comoventes do filme de Vicente Ferraz se passa dentro de um tanque de guerra norte-americano, na qual um pracinha paraibano, um pracinha negro da FEB e um prisioneiro alemão conversam sobre futebol – Leônidas! – e trocam fotos da família.

Guerras inspiraram o melhor da poesia e da literatura no século 20, a começar pelos poetas da Primeira Guerra Mundial. Os livros de Schnaiderman, Mello e Souza e Udihara, como o filme de Vicente Ferraz, mostram que é possível tratar do tema da participação do País na Segunda Guerra Mundial sem ufanismo ou qualquer simpatia pela ditadura Vargas. Em Três poetas brasileiros e a Segunda Guerra Mundial (Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Murilo Mendes), tese de Doutorado na USP, Murilo Marcondes de Moura estudou a importância crucial da poesia de guerra na obra destes autores centrais da poesia brasileira no século 20. Mas infelizmente ainda são poucos os livros não no registro militar, mesmo de história, sobre a FEB, lembrando as obras de Cesar Campiani Maximiano, Ricardo Bonalume Neto, Francisco César Ferraz e relatos como o de Rui Moreira Lima, para citar alguns dos poucos exemplos.

Ao se completarem 70 anos do fim da guerra, os leitores em português mereciam mais livros e mais leituras sobre este episódio central da história do século 20. No momento em que se lembra a derrota nazista e a participação da FEB na Itália, o filme de Vicente Ferraz supre com largos méritos o esquecimento dessa história entre nós.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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