Produtores criticam, e Ministério da Cultura rebate questionamentos sobre reforma da Lei Rouanet

Falta de dados técnicos e inseguranças são apontados como obstáculos ao novo marco dos incentivos culturais

por Maurício Meireles

Embate entre artistas, governo e empresas sobre novas regras ainda não se esgotou - Editoria de Arte

Há cinco anos tramitando no Congresso, as propostas de mudança nas formas de incentivo a projetos culturais não sofrem apenas com a morosidade da política brasileira. As polêmicas e, mais além, a falta de entendimento sobre as novas regras não se esgotam, causando embates entre a classe artística, as empresas e o governo. Há cinco meses de volta ao Ministério da Cultura (MinC), Juca Ferreira está determinado em fazer o Procultura (6.722/2010), que revogaria a Lei Rouanet (8.313/91), ser finalmente aprovado.

O capítulo mais recente da novela é o debate público do presidente da Fundação Nacional das Artes (Funarte), Francisco Bosco, com a atriz Fernanda Torres em artigos na “Folha de S.Paulo”, na última semana. A discussão começou com um recorrente dilema — é certo artistas consagrados receberem dinheiro público via isenção fiscal para seus espetáculos? —, mas expandiu-se para outros pormenores.

De um lado, o governo quer fortalecer o Fundo Nacional de Cultura (FNC) para ter maior autonomia na escolha de onde os recursos públicos serão aplicados — segundo o MinC, essa decisão hoje está nas mãos dos departamentos de marketing dos patrocinadores. De outro, alguns produtores avaliam que um ano de crise não é o momento para se “demonizar” a Lei Rouanet. Segundo eles, essa atitude pode fazer os recursos minguarem. O GLOBO levantou as principais controvérsias apontadas por produtores e procurou o MinC para esclarecê-las.

Onde estão os dados?

Sérgio Sá Leitão, ex-secretário municipal de Cultura do Rio de Janeiro, acha que o debate se coloca de forma ideológica, sem informações concretas para embasá-lo.

— Os números estão brutos lá no sistema do MinC. É preciso disponibilizá-los de forma tratada — diz, lembrando que mesmo a afirmação de que os recursos são concentrados no Sudeste não tem dados concretos que a sustente.

Um levantamento do MinC sobre a tão falada concentração mostra que, desde 1995, 67% dos projetos aprovados para captar pela Lei Rouanet são do Sudeste. Se o assunto é dinheiro, a coisa parece piorar: do total captado desde o mesmo ano, 80% foram no Sudeste. O problema, apontado por Sá Leitão e outros, é que esses dados se referem a onde o autor do projeto tem seu CNPJ. Se uma produtora do Rio capta recursos para uma peça de teatro no Acre, seu projeto é computado como sendo do Sudeste. O MinC diz que vai resolver isso.

— Esperamos ter esses números em breve. Mas duvido que esse cenário vá mudar. Talvez os números mudem, mas não a concentração, que não é apenas da cultura, mas econômica — afirma o secretário de fomento e incentivo à cultura do MinC, Carlos Paiva.

Como fica a isenção fiscal?

Para a produtora teatral Aniela Jordan, o Procultura ainda não foi compreendido pela classe. Desse modo, ela não concorda com a necessidade de se criar uma nova lei e acha que seria melhor corrigir as imperfeições da Rouanet.

Um dos pontos menos claros é como funcionará a isenção fiscal para patrocinadores. Eis a explicação: se um show precisa de R$ 100 mil, o patrocinador só vai conseguir isenção de R$ 80 mil. Os outros R$ 20 mil entrarão como recursos próprios. Com o crescimento na arrecadação do Imposto de Renda, o MinC espera fortalecer o FNC.

Há riscos de corte de orçamento?

Para o produtor teatral Eduardo Barata, o risco de se priorizar o FNC é, em momentos de crise, ele ser contingenciado. A preocupação não é à toa. O orçamento aprovado para a Cultura neste ano é R$ 3,3 bilhões, mas ainda aguarda os cortes determinados pelo ajuste do Planalto. Os representantes do mercado acreditam que o montante final acabe sendo bem menor. O secretário Carlos Paiva acha que isso não é motivo para não se avançar com o Procultura:

— Acho que o risco sempre existe, mas ele não deve ser motivo para não atuarmos de forma correta. Quando usamos o mecenato, o risco é da concentração de recursos. Qualquer um desses mecanismos envolve um risco. É inconcebível em qualquer lugar fazer política pública sem investimento direto do Estado. De algumas dinâmicas, o patrocínio privado não dá conta.

A culpa é das estatais?

Barata lembra ainda um fato importante: as estatais são as principais patrocinadoras do meio cultural via Lei Rouanet. Não teriam elas, portanto, culpa na concentração? Não seria mais fácil para o Estado democratizar os recursos públicos para a cultura por meio delas, em vez de revogar a Lei Rouanet? O MinC concorda nesse ponto, mesmo sem recuar do Procultura.

— Já houve um tempo em que o MinC atuou de forma mais enfática nesse sentido. A última vez que olhamos, creio que a concentração do patrocínio estatal no Sudeste estava em 50% — afirma Carlos Paiva. — Garanto que é um tema caro ao ministro Juca Ferreira. Já estamos conversando para que as estatais possam atuar por uma menor concentração de recursos.

O momento é oportuno?

Todos os produtores consultados pelo GLOBO afirmam que, em ano de crise econômica, é um péssimo momento para se acabar com a Lei Rouanet. A classe artística já espera para 2015 uma redução significativa no patrocínio das empresas. Para muitos, esse debate deveria ficar para depois.

— Essa é uma dificuldade real. Qualquer pessoa da área, com trajetória ou não, tem dificuldade para viabilizar sua ação cultural. Não podemos adiar uma demanda que é da própria área — diz Carlos Paiva. — Quem pondera isso vê a questão do ponto de vista de que pode perder a forma como utiliza os incentivos. Mas você continua com uma gama imensa de pessoas que não conseguem acessar recursos.

Os patrocinadores vão fugir?

Aniela Jordan afirma que, quando a Lei Rouanet foi criada, os produtores levaram um período de cinco anos para convencer as empresas a utilizá-la. Era como um período de educação. Ela acha que, com uma mudança, a produção cultural vai enfrentar um recuo de investimentos, até as empresas se acostumarem ao Procultura.

Além disso, para os produtores consultados, o MinC está “demonizando” a Lei Rouanet. Como o uso dela envolve um retorno de marketing para as empresas, eles veem o risco de elas evitarem investir, por medo de se envolverem em uma controvérsia.

— Essa mudança terá uma janela de transição. Quando você mexe em algo, a dinâmica ( do mercado ) é alterada. Acho que o risco ( de os patrocinadores se afastarem no primeiro momento ) existe, mas ele costuma ser supervalorizado — rebate Carlos Paiva. — Os maiores patrocinadores da Rouanet, estatais e não estatais, já aportam recursos próprios em projetos, porque acreditam que é importante investir em cultura. Quem vai se afastar é quem já não investia em cultura por causa da cultura.

Haverá migração para o cinema?

Como o Procultura não oferece 100% de isenção, o medo dos produtores é que as empresas migrem para outras leis de incentivo — como a Lei do Audiovisual, que, no caso de longas-metragens, oferece 125% de abatimento do IR. Otimista, o Ministério da Cultura não acredita que isso acontecerá.

— Há empresas que já têm um histórico de patrocínio em determinadas artes, e isso foi importante para o desenvolvimento de certas áreas. O que guiou essas empresas não foi a isenção de 100%. Ela não vai deixar de investir em um bom projeto porque outra área, como o cinema, oferece mais isenção — afirma Paiva.

A nova lei será revista a cada cinco anos?

Um medo que se espalhou no mercado cultural foi a crença de que o Procultura precisará ser revisto a cada cinco anos no Congresso. A informação é correta. De fato, depois que a Lei Rouanet foi aprovada, as leis orçamentárias passaram a prever uma revisão pelo Legislativo de toda norma que concedesse isenção fiscal. A lei orçamento de 2015, que a presidente Dilma Rousseff promete sancionar semana que vem, determina, no artigo 109, que leis que possam afetar a receita pública devem ter uma cláusula determinando sua vigência por no máximo cinco anos.

Famosos merecem recursos públicos?

Este é um dos pontos mais polêmicos desde sempre nas leis de incentivo. Para Paiva, o critério deve passar pela linguagem de cada obra cultural: quem faz algo mainstream , e em princípio poderia se viabilizar pelo mercado, não deveria precisar de recursos públicos. Mas quem investe em linguagens mais experimentais, sim. A empresária Paula Lavigne acha que é preciso separar políticas para a indústria criativa das políticas para a cultura.

— O problema está na estrutura da Lei Rouanet, que foi feita de uma maneira errada. É uma lei de mercado, que se baseia no retorno de marketing. Assim, ela beneficia quem tem mais visibilidade. E isso não é um erro do artista, e sim da lei — diz ela. — Precisamos de uma secretaria da indústria cultural brasileira. Não adianta mudar a lei e todos seguirem disputando o mesmo apoio, na mesma plataforma, deslealmente.

Carlos Paiva afirma que a ideia do Procultura é tirar do papel um mecanismo já previsto na Lei Rouanet, mas que por enquanto não evoluiu: os fundos de investimento cultural e artístico (Ficarts), voltados exatamente para a indústria cultural. O Fundo Nacional de Cultura, além de ser usado para investimento direto, poderia fazer investimentos reembolsáveis e oferecer empréstimos. Um modelo parecido com o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Sérgio Sá Leitão discorda dessa possibilidade.

— O FNC pode ser contingenciado. O FSA arrecada R$ 1 bilhão por ano. Menos de 10% desse dinheiro é efetivamente empregado, porque o resto vai financiar o superávit fiscal, que, aliás, agora virou déficit fiscal. — afirma Sérgio Sá Leitão.