Cultura Livros

Autor de algumas das melhores HQs do Tio Patinhas, Don Rosa participa da Comic Con Experience

Desenhista americano vem ao Brasil para o evento que começa nesta quinta-feira, em São Paulo

O americano Don Rosa
Foto:
/
Divulgação
O americano Don Rosa Foto: / Divulgação

RIO — O quadrinista americano Keno Don Hugo Rosa, de 63 anos, é um daqueles artistas ofuscados pela obra. Ainda que seu trabalho mais conhecido e adorado, “A saga de Tio Patinhas”, tenha sido produzido com um personagem criado por outro autor, Carl Barks (1901-2000), é difícil não reconhecer a importância de Rosa para os quadrinhos em geral, não só os da Disney. E, se você comprou ou pegou emprestado algum gibi do Tio Patinhas nos últimos 20 anos, pode estar certo de ter lido alguma das histórias produzidas por este simpático senhor. Mesmo sem o devido crédito, as HQs de Don Rosa, como ele é conhecido, são facilmente identificáveis graças à riqueza dos cenários e ao ritmo ágil, com a família de patos viajando pelos EUA ou pelo mundo, sempre em busca de aventura, ou somente tentando recuperar a moedinha número 1.

O velho pato avarento foi criado por Barks em 1947, a partir do clássico “Um conto de Natal”, de Charles Dickens, mas foi com Rosa — um engenheiro que abriu mão da empresa da família para se dedicar aos quadrinhos — que Scrooge McDuck (o nome original do Tio Patinhas, herdado do Ebenezer Scrooge de Dickens) ganhou uma cronologia, com aventuras que colocavam em ordem a história do pão-duro. Sempre tomando como referência o material produzido, décadas antes, por Barks, o rei dos patos da Disney e seu mestre.

Rosa, infelizmente, não desenha mais, devido a problemas de saúde e à luta por direitos autorais com várias editoras, inclusive no Brasil. Nos últimos anos, aproveita o tempo livre para ir a convenções e conhecer seus fãs. E, desta vez, ele vem ao Brasil, com status de estrela do rock, para a Comic Con Experience, que começa amanhã, em São Paulo, e termina no domingo. Além dele, outros convidados ilustres virão ao país, como os quadrinistas Klaus Janson (“Batman — O cavaleiro das trevas”) e José Luis García-López (”Cinder e Ashe”), além dos atores Jason Momoa — que se prepara para ser o herói Aquaman — e Sean Astin (“O senhor dos Anéis”). De sua casa, em Louisville, no Kentucky, Rosa conversou com o GLOBO, por e-mail, sobre Barks, Patinhas e a recente publicação de suas HQs nos EUA, pela Darkhorse, em edição de colecionador.

Muito já se falou sobre a influência de Carl Barks em seu trabalho, mas como foi ler as primeiras HQs produzidas por ele? O senhor ainda tem essa sensação em sua memória?

Eu não sei se sou capaz de responder a essa pergunta. Eu cresci com uma irmã 11 anos mais velha do que eu. E ela colecionava quadrinhos. Então, quando eu nasci, a casa já estava cheia deles. Eu vi quadrinhos desde os meus primeiros dias de vida. E, como a maioria das crianças daquela época, nos EUA, minha irmã teve diferentes tipos de gibis, mas também gostava dos infantis, e alguns de seus favoritos eram o do Pato Donald e o do Tio Patinhas, de Carl Barks. E, naturalmente, também se tornaram os meus. Assim, quando vi pela primeira vez uma HQ de Barks, eu devia ter um mês de idade. E demoraria muitos anos para aprender a ler. No início, eu só olhava as figuras.

Depois de ter produzido tantas histórias em quadrinhos com os personagens Disney, ainda existe alguma que o senhor gostaria de contar?

Bem, peço licença para corrigi-lo. Eu produzi quadrinhos com os personagens de Carl Barks. Eu não tenho qualquer interesse na versão original e pastelão do Pato Donald da Disney. Meu interesse está em como Carl Barks o recriou como personagem, com uma cidade natal e uma família, rodeado de figuras interessantes como o Tio Patinhas e muitos outros. Para mim, estas criações são claramente de Barks. A Disney não tinha nada a ver com a produção de histórias em quadrinhos. Mesmo hoje, as HQs são produzidas por autores independentes, assim como Barks e eu, e publicadas por outras editoras. E quanto a querer ou não contar mais histórias com os personagens de Barks... não.

Como anda a relação do senhor com a Disney e com editoras que publicam suas histórias?

Como disse, a Disney não tem nada a ver com a criação de histórias em quadrinhos, e eu nunca tive nada a ver com a empresa. Quanto à editora brasileira licenciada a vender os quadrinhos Disney, é uma situação triste que eu gostaria que eles pudessem ter corrigido. Uma das razões que me levaram a perceber que eu deveria parar foram as publicações especiais de minhas histórias, promovendo a venda usando o meu nome. A verdade é que as pessoas que criam esses quadrinhos não recebem royalties. Não importa se as histórias são coletâneas em boxes de colecionador ou reimpressões. A Disney e as editoras nunca dividem os lucros com os criadores da obra. Mas eu não tenho nenhuma objeção a isso. Quando eu comecei a criar as histórias, há 25 anos, eu sabia que isso poderia acontecer. E também sabia que não poderia ficar rico criando quadrinhos com personagens de propriedade da Disney. Mesmo quando essas editoras internacionais começaram a reimprimir o meu trabalho em edições caras, eu não tive objeção, afinal as histórias não são de minha propriedade. Mas o meu nome é. E se uma editora quer promover as vendas de um livro usando o meu nome, tudo bem, só é preciso ter minha permissão. Nos EUA e na Europa, os editores prontamente concordaram com isso. Mas, infelizmente, a editora brasileira (Abril) se recusou a discutir essa ideia comigo. Então, eu fui forçado a impedi-los de colocar meu nome em seus livros. Eu acho que eles partem do princípio de que os leitores reconhecem o meu estilo, mesmo sem ver o nome impresso. Daí decidiram me ignorar. Mas eu gostaria que não fosse assim, pois os fãs brasileiros perdem um grande número de extras que eu poderia oferecer.

Falando nisso, como está a republicação de sua obra pela editora americana “Fantagraphics”?

Por muitos anos, fãs de quadrinhos de todo o mundo puderam ter coleções de minhas obras em seus idiomas, mas eu não sei ler em qualquer uma dessas línguas! Não é justo! Porém, a “Fantagraphics” obteve a licença para reimprimir o trabalho de pessoas como Carl Barks, Floyd Gottfredson e... Don Rosa. Então, agora, eu também tenho uma coleção de meu próprio trabalho em uma língua que eu posso ler. E, como é o acordo, em troca da concessão do uso de meu nome em seus livros, os editores me dão o controle sobre o roteiro, a cor ideal e todos os aspectos que fazem com que os quadrinhos apareçam de forma muito melhor do que quando o editor e o artista não funcionam muito bem em conjunto. Estou mais animado do que qualquer outra pessoa com o excelente trabalho que a “Fantagraphics” está fazendo nesses livros.

Certa vez, entrevistei o ilustrador brasileiro Renato Canini, que era idolatrado em nosso país por ter tornado o Zé Carioca mais autêntico. Ele confessou que produziu suas HQs sem conhecer o Rio de Janeiro, usando referências de cartões postais e revistas, pois ele era do sul do Brasil e morreu sem ter vindo à cidade. Como foi, para o senhor, o processo de desenhar tantas aventuras do Tio Patinhas em uma época sem internet? Chegou, por exemplo, a viajar ao Klondike (no Canadá) , cenário de uma das mais famosas HQs produzidas pelo senhor com o personagem?

Bem, não... não era necessário. Eu espero que você não esqueça de que há uma fonte de informação mais confiável do que a internet: os livros. Eu, agora, uso a internet, como qualquer pessoa. Ou, provavelmente, muito mais. Mas eu não tinha problemas em fazer minhas pesquisas em livros. Eu tenho uma enorme biblioteca de referências, mas também frequento bibliotecas públicas, e, muitas vezes, procuro professores de História interessados em ajudar escritores de ficção. Porém, preciso confessar que quando produzi a história “O retorno dos três cavaleiros” ( HQ com Pato Donald, Zé Carioca e Panchito, publicada no Brasil em 2010 ), eu me baseei em informações e fotos recolhidas durante uma viagem ao Brasil, quando fui convidado, há alguns anos, para uma convenção de quadrinhos em Recife.

Qual foi a sensação de ver o seu trabalho com Tio Patinhas ser transformado em música pelo tecladista Tuomas Holopainen, da banda finlandesa de heavy metal Nightwish, que lançou este ano o álbum “Music inspired by the life and times of Scrooge” (capa ao lado)?

Esta é uma grande história. Após uma de minhas conferências na Finlândia, fui procurado por uma das maiores estrelas da música daquele país. Ele chegou para mim e disse que havia crescido lendo os quadrinhos do Pato Donald, que “A saga do Tio Patinhas” era o seu livro preferido de todos os tempos. E planejava escrever um álbum de música baseado em minhas histórias. Eu, que não sou fã de heavy metal e prefiro a música pop das décadas de 1940 e 1950, fiquei perturbado com a ideia. Mas como achei que nunca mais ouviria falar do cara de novo, concordei e pedi a ele para me manter informado. Um ano depois, Tuomas me mandou um e-mail dizendo que tinha acabado de compor todas as músicas, e havia agendado para gravar o álbum com a Orquestra Sinfônica de Londres! Foi quando eu comecei a me preocupar. Ele, então, me convidou a ir até o seu estúdio de gravação para participar de um vídeo promocional, para divulgar o disco, e foi aí que eu ouvi algumas das músicas. E chorei. Aquilo não era heavy metal em absoluto. Era uma legítima trilha sonora. E era linda. Eu, que sou um colecionador ávido de trilhas de filmes, topei com um homem que fez uma trilha sonora para acompanhar os meus quadrinhos! Foi um sonho que se tornou realidade!

Em algum momento o senhor se arrependeu de ter abandonado a carreira de engenheiro pela de quadrinista?

Hah! Não!! Engenheiros ganham muito mais dinheiro do que eu, mas qual engenheiro tem milhões de amigos ao redor do mundo, é convidado para países estrangeiros e é tratado como uma estrela de rock?