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O fundamentalismo literário
PublishNews, 13/03/2014
Por que nossos eventos literários repetem sempre os mesmos nomes?

O filme que trago hoje foi lançado em 2012, mas pouca gente assistiu. O fundamentalista relutante baseia-se no livro homônimo do escritor paquistanês Moshin Hamid e foi levado para as telas pela diretora indiana Mira Nair e tem Kiefer Sutterland como um dos protagonistas. Escolhido para abrir o festival de Veneza em 2012, alguns disseram que fora por motivos políticos. Para mim, ele tem várias qualidades, mas a melhor é mostrar como os fundamentalismos nascem e prosperam em todos os lados. O filme conta a história de um paquistanês que decidiu viver o sonho americano. Mudou-se para os EUA, alçou um voo muito rápido, até que alguns fatos o levaram rever seu plano. Ele acabara de se tornar sócio de uma firma de reestruturação de empresas, então a empresa é contratada por um companhia de comunicação que precisava enxugar custos. A ele caberia cortar cargos e salários de uma tradicional, adivinhem... EDITORA. Rsrsrs... Ele, que estava tentando se manter firme naquele propósito de vencer na vida, vê ali os fundamentos de sua vontade inicial postos à prova com relação à sua origem. Numa outra ponta, de volta ao Paquistão, começa a lecionar numa universidade. Suas ideias políticas atraem os estudantes e acaba por se tornar uma liderança natural entre os jovens. Logo, líderes do movimento islâmico fundamentalista tentam cooptá-lo para suas linhas de comando, mas ele gentilmente recusa. Vê-se então diante de um impasse: dois movimentos contrários entre si, ambos fazendo seu proselitismo para angariar simpatia e, sob o menor sinal de recusa, nosso

protagonista é tratado como adversário de ambos. O título ficaria mais claro se chamasse O relutante ao fundamentalismo, mas perderia a poesia.

No artigo anterior do PublishNews tratei do tema:

Por que gêneros menos literários e seus autores ficam de fora dos grandes eventos de literatura? Hoje vou sair da pergunta para propor uma forma de como pode ser feito.

E é importante abrir parêntesis aqui porque ainda há certa confusão. Literatura são escritos em prosa ou verso, de qualquer área. Por isso chamamos ora de literatura acadêmica, inglesa, médica, botânica, de autoajuda. Literário é quando a arte de escrever e o domínio da forma são tão ou mais relevantes que o conteúdo. Em geral é onde se encontram quase todas as obras poéticas e muitos romances, mas pode ser utilizada em qualquer área. Hilda Hilst escreveu um livro erótico literário; alguns biógrafos foram mais literários em suas narrativas, como Capote. Enfim, não dá para separar uma coisa da outra, pois o aspecto literário pode estar presente em qualquer livro, em qualquer parte, de modo que fazer uma divisão sempre se cai num aspecto subjetivo. E não acho que o grande público leitor escolha obras por serem mais ou menos literárias. Pelos números de vendas, buscam o contrário.

Há algum tempo tenho escrito sobre como o mercado editorial pode aprender com os leitores. Venho comentando sobre os direcionamentos que todos os veículos de cultura dão como indicação sobre o que é bom e merece ser valorizado, tornando excluídos gêneros e autores que, hoje, mais do que nunca, são os grandes financiadores das editoras, livrarias, gráficas e eventos culturais.

Sendo o cerne dos questionamentos que propus no artigo anterior, sempre faço antes de cada novo artigo, saio conversando com amigos, colegas e profissionais diversos do mercado editorial para ouvir outras opiniões. Assim, o que publico, são também frutos de generosas conversas com gente de todas as áreas deste mercado.

Comecei a fazer perguntas, e colhi respostas de algumas pessoas que tem atuado na organização de eventos e discutido alternativas para incluir novos talentos nos grandes eventos culturais.

Mariana Teixeira, agente literária, que atua no mercado editorial há mais de uma década e bagagem de mais 15 anos de TV Globo e Futura, fez uma boa pergunta em sua página no Facebook e gerou interessantes comentários.

Porque sempre levam os mesmos nomes para os eventos?

Ela trabalha com diversos autores, alguns de textos mais literários, outros mais comerciais, ficção e não ficção, então percebe como a entrada de novos talentos em eventos culturais é sempre muito difícil.

Cristiane Costa, jornalista e editora, com larga experiência em curadoria em eventos apontou o problema. “Porque os patrocinadores dos eventos reclamam quando há nomes que eles não conhecem e logo perguntam: mas e o Gullar, não vai chamar?” E completou. “E o pior, é que o coitado do crítico literário não saberia falar de outro autor se fosse convidado a falar em público”

E com Marisa Moura, agente literária que idealizou e está à frente da coordenação literária da FLAQ, em Aquiraz, cidade que fica a 30 km de Fortaleza, é uma das pessoas que tenta levar temas e autores diferentes ao evento. E sei que todos os que buscam diversificar nessa linha encontram as mesmas barreiras. E como diversificar não é apenas incluir eventos que hoje não existem, mas trazer novos nomes, resgatar outros esquecidos, enfim, que todas as feiras que ocorram num ano não fiquem desfilando apenas os mesmos nomes.

A situação não é simples. Muitos organizadores não conseguem conceber um evento que não tenha apenas os grandes e esperados nomes. Temos uma indústria, divulgadores, imprensa e público que cresceu lendo apenas autores de dois séculos atrás até os modernistas e não conhecem nada além deles; e com uma crença de que boa literatura é ficção, poesia, ou as obras em que o exercício do idioma se transforma em arte. Isso é um tipo de fundamentalismo.

E, ao fazer isso excluímos todos os gêneros onde a arte está na história, no conteúdo, na imaginação, na entrega do que é proposto, seja entretenimento, diversão, fantasia, interatividade, não importa. E se encontra abundantemente em todos os gêneros.

Mas esse fundamentalismo não acontece com os “outros”. Somos todos nós, eu, você, o amigo, o professor, o editor, o jornalista, o bibliotecário, o reitor, o designer de moda... Todos nós crescemos e mantemos essa ideia de há mais qualidade quando algo é exclusivo, para um grupo restrito e isso pode fazer até sentido para algumas formas de arte quando são peças únicas, como quadro, esculturas; mas em se tratando de promoção dos livros e literatura, que precisa multiplicar um obra em milhares para torná-la viável, esse conceito é um atraso.

Acredito que a qualidade só possa ser medida por quem consome. E, isto também ouvi há dez anos de um reconhecido editor, que fundou a mais importante revista de Cultura que já tivemos, e me fez virar crente da premissa: um livro que vende muito não pode ser ruim, porque cumpriu o seu dever, de se comunicar com muitos outros. A exceção, eu faria, são aqueles em que as pessoas não compram porque gostam, mas apenas por motivos partidários ou de fé, onde a escolha está de algum modo subtraída.

Mas vamos à parte prática: quando proponho que eventos culturais como bienais e feiras do livro possam atender a outros públicos, que não reprisem sempre os mesmos nomes e temas, o que pode ser feito?

Primeiro penso que temos de dar opções: a cadeia de divulgação cultural precisa ser apoiada. Ela sozinha não consegue mudar o rumo desse barco. Pesquisando sobre os eventos oficiais das bienais, vi logo de cara uma chamada que dá bem a medida deste problema:

No Salão de Idéias estarão... “Zuenir Ventura, Ana Maria Machado, Edney Silvestre, Lya Luft e muita gente bacana.” Chamada do jornal O Globo sobre a Bienal do RJ 2013.

Fico pensando como o mesmo editor do caderno chamaria um evento popular no meio da festa do livro: se fosse na linha do que andou escrevendo Vargas Llosa diria: “A Barbárie invade a Bienal.” Ou “Festa literária se rende à indústria.” Como se os jornais e as revistas, para continuarem sendo lidos, não tivessem se aproximado mais do público nos últimos dez anos.

Que tal, por exemplo, uma bienal ter uma mesa sobre os desafios da educação financeira? Ou a busca da espiritualidade segundo Jung ou numa versão ecumênica? Ou sobre literatura fantástica em que autores nacionais mostrem como tropicalizaram temas universais? Quais as vantagens, processos de criação, inspiração e transposição desses trabalhos? Ou ainda com uma mesa em que autoras de livros para meninas falem do que as motivou escrever. Ou porque decidiram escrever livros que tiram a carga fantasiosa dos contos de fadas? Ou ainda, que reúna autores educadores, psicólogos ou terapeutas não para teorizar, ou para discursar sobre temas acadêmicos, mas para falar por temas: como se livrar da culpa; como se preparar para uma terapia; como enxergar os seus defeitos e aceitar os dos outros. É claro, para identificar esses novos caminhos, tem de estar por dentro dos fenômenos da literatura e sem um olhar desrespeitoso, como ocorreu quando a onda de eróticos surgiu: para mim, uma consequência de centenas de movimentos em que a mulher se deu ao direito de ver o sexo mais próximo do que sempre foi o direito do homem.

Já prevejo alguns risos nervosos de gente que pode achar os temas ridículos, sendo que são apenas caminhos para se trabalhar de modo diferente.

Mas porque proponho isso?

Porque o que se faz hoje exclui muita gente, e penso que estamos errados há muito tempo.

O que penso que muitos gostariam de ver é criatividade em temas e autores nesses eventos de feiras do livros e bienais. Há muitos temas que parecem teses de mestrado em eventos que deveriam ser populares. Há tempos sabemos que quem frequenta bienais são as pessoas comuns. Grande parcela dos intelectuais frequentam saraus, lançamentos, rodas culturais de circuitos das grandes cidades.

Querem ver exemplos de como boa parte desses eventos ignoram a presença do grande público?

Dois links que encontrei na internet. Um da Bienal de SP e outra do RJ. Nesse recorte, em geral, eventos mais voltados para um leitor mais clássico, no RJ. Algumas propostas de comunicação com o grande público em SP, mas ambos, tem muito a melhorar. E volto a dizer para não parecer um apontar de dedos. Não é culpa de uma pessoa. Somos todos nós que alimentamos as mesmas expectativas e só queremos mais do mesmo.

Primeiro vamos ver a programação do Café Literário da última Bienal do Rio

E os temas das mesas encontrados aqui: “A sabedoria entre mundos”; “A poesia do século XXI”; “Sabedoria, Riso, Sociedade”; “O traço e a escrita na produção do narrar”; “Obra de ficção como trabalho”; “Contato entre culturas: do choque ao afeto”; .... E todo os restante continua na mesma pegada.

Na de São Paulo de 2012, com poucas tentativas populares, e algumas novidades boas, mas apenas voltadas para públicos específicos ligados a literatura, como atuantes e aspirantes a funções no mercado editorial, como se vê nessa matéria do G1.

O que peço para observarem em ambos os eventos?

Para quem não sabe, há dois tipos de eventos nas principais feiras do Livro: aqueles promovidos pela organização do evento, e para os quais são produzidas peças de comunicação diversas. São os eventos oficiais, que contam com toda a força de publicidade e são realizados nos espaços culturais de prestígio e acesso a todos os participantes. Os outros são de produção, custo, organização exclusivos das editoras.

Livros vistos apenas como produtos

Vamos dar exemplo de dois fenômenos das bienais: livros de padres e literatura fantástica. Pergunto: porque os eventos oficiais não convidam os autores que mais vendem livros neste país para estes eventos? Porque os relegam a simples tardes de autógrafos, financiadas por suas editoras, mas em que não há espaço para exposição de idéias?

Penso que associam que se um livro é popular não possui um tema a ser discutido Assim, os grande levadores de gente para as Bienais ficam restritos rubricar livros, onde não há nenhuma oportunidade de interação intelectual com o público. Basicamente, acreditam que este é o lugar que lhes cabe. E, na verdade, as bienais (e isso se estende a várias feiras importantes do livro pelo país) apenas segue com esses autores a repetição do que se realiza nas livrarias: filas de autógrafos intermináveis, mas numa posição em que os autores não passam de celebridades, quase sem abrir a boca.

Por que há algo de errado nisso?

Por que estamos tratando o público desses livros com desprezo? Porque quando não propomos uma integração entre a as pessoas e os livros, estamos dizendo várias coisas: que os livros não são bons o suficiente para promover uma conversa com os leitores; e que estes leitores não são um público de que devamos nos orgulhar da presença e da sua participação. Para mim, estamos oferecendo apenas circo para estas pessoas que buscam ler. E impedindo que essa tentativa de começo, essa literatura que pode servir de acesso a outras, produza uma experiência que sobreviva a toda a sorte de distração que o mundo oferece.

Sugiro aos autores que gostariam de ser incluídos nesses eventos que se organizem com outros autores com propostas afins, proponham eventos para as bienais e feiras, porque uma parte do problema é que muitos curadores são especializados numa área mais clássica e não conseguem sozinhos elaborar essas novidades. E façam o mesmo com as redes de livrarias. Estas, já estão à frente com belas iniciativas, e já produzem eventos populares com frequência atendendo a demanda deste enorme público.

Vejo o futuro com otimismo. As iniciativas acontecem de ambos os lados, mas quanto mais cedo apoiarmos as iniciativas populares, mais forte nosso mercado cultural fica. O mercado sempre dita as regras. Uma hora, se isso demorar a acontecer, esses levadores de gente começam a migrar das bienais para eventos exclusivos, e são os grandes eventos que vão perder uma boa injeção de público que hoje alimenta essas feiras. O que cada um pode fazer? Um começo é parar de perguntar: Não vai ter o Gullar?

Se quiser escrever algum comentário, será um prazer recebe-lo, pois aprendo sempre com visões de áreas diversas. Escreva em meu blog: www.faroeditorial.wordpress.com

Pedro Almeida é jornalista profissional e professor de literatura, com curso de extensão em Marketing pela Universidade de Berkeley. Autor de diversos livros, dentre eles alguns ligados aos animais, uma de suas paixões. Atua no mercado editorial há 26 anos. Foi publisher em editoras como Ediouro, Novo Conceito, LeYa e Saraiva. E como editor associado para Arx; Caramelo e Planeta. É professor de MBA Publishing desde 2014 e foi presidente do Conselho Curador do Prêmio Jabuti entre os anos 2019 e 2020. Em 2013 iniciou uma nova etapa de sua carreira, lançando a própria editora: Faro Editorial.

Sua coluna traz exemplos recolhidos do cinema, de séries de TV que ajudam a entender como funciona o mercado editorial na prática. Como é o trabalho de um ghost writer? O que está em jogo na hora de contratar um original? Como transformar um autor em um best-seller? Muitas dessas questões tão corriqueiras para um editor são o pano de fundo de alguns filmes que já passaram pelas nossas vidas. Quem quer trabalhar no mercado editorial encontrará nesses filmes algumas lições importantes. Quem já trabalha terá com quem “dividir o isolamento”, um dos estigmas dos editores de livros. Pedro Almeida coleciona alguns exemplos e vai comentá-los uma vez por mês.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews

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