Voltaram a pipocar, aqui e ali, matérias alertando para o “emburrecimento” da nova geração, sempre plugada, se desgarrando do mundo “real” pelo universo da rede. As críticas a esses jovens online costumam começar com uma condenação a um estilo de vida — a distração, a incapacidade de se aprofundar em um assunto, o bovarismo — e logo sobem alguns graus para afirmar que a insistência em tal comportamento acarretará em graves danos cerebrais, gerando um indivíduo que, de tanto se “socializar” nas redes será inútil à sociedade. Seria o que chamam de “demência digital”, o mal do século.
Sobre causar danos cerebrais, estão certos. Ou quase isso. É provável sim que os nativos digitais já tenham uma nova configuração neural, mais apta a conviver com fontes múltiplas e simultâneas de informação e estímulo. O fenômeno chama-ser neuroplasticidade, e sem ele, nada aprenderíamos. O cérebro de um spalla de orquestra, por exemplo, é exatamente igual ao de um contador, mas cada um deles foi tecendo seus neurônios, à medida que aprendia e vivenciava seu ofício, no circuito que mais lhes habilitasse para executar um pizzicato ou amortizar o diferido, respectivamente.
O que os críticos e digitoludistas não querem reconhecer, no entanto, é que não há uma configuração cerebral “perfeita”. Isso seria uma “eugenia mental” à la Goebbels. A mente muda no indivíduo, e muda nas gerações. Assim como o cérebro das pessoas vai se configurando, também as gerações vão alterando sua “placa-mãe”. Uma característica geral da “circuitação cerebral” dos nativos digitais é o fim da exclusividade do modelo linear de aprendizado, com um dado de cada vez, construindo um conhecimento. E isso, especulações fisiológicas à parte, é que representa(ria) risco para nós que trabalhamos com livros.
Em outras palavras, o nativo digital “multiestimulado” não conseguiria acompanhar narrativas lineares longas, não conseguiria se engajar em argumentações complexas — enfim, não conseguiria ler um livro.
“Estudos mostram que metade das crianças chinesas que aprendem a usar o computador não é mais capaz de ler. Se isso não mostra o perigo do digital, então não sei o que mostra”. Estudos mostram que estudos mostram o que foram pagos para mostrar, e é preciso ter muito medo para conseguir fazer sentido do que o professor Manfred Spitzer, arauto da “demência digital”, quis dizer com essa estatística difusa.
Um traço comum entre os críticos é o apelo ao cânone. “Quem vai conseguir ler Guerra e Paz?” Um dos autores que mais ganhou dinheiro com o pânico, Nicholas Carr (de The shallows), chegou a dizer que o livre acesso à informação, trazido pela internet, levou a um enorme aumento da comunicação, favorecendo somente a fofoca e a trivialidade — os jovens estariam falando de celebridades quando deveriam estar lendo Milton ou Shakespeare. (Cabe perguntar se o bardo, lá no século 17, estava mais preocupado em ler Chaucer ou Aristóteles ou em satisfazer o público fofoqueiro com peças divertidas e “superficiais” como Sonho de uma noite de verão.)
Enfim. O que estamos enfrentando, e pela primeira vez, é o fenômeno da abundância abrupta. Temos estímulos demais, livros demais a nosso alcance (além de filmes, músicas, aplicativos, memes e vídeos de gatinhos). Como lidar com tudo isso, sem ficar demente? Em um experimento bem conhecido com os bonobos, primatas geneticamente parecidos com os homens, foi oferecido a um grupo desses macacos uma montanha de comidas — bananas, carnes, doces. Os bonobos, frente à abundância abrupta, no lugar de atacar a comida, começaram a fazer sexo desenfreadamente, e em todas as combinações de gênero e posição. Algo parecido pode ocorrer com nossa espécie de primatas: frente à abundância de informações, não conseguimos absorver, ou processar, então nos regozijamos. Em todas as combinações. E temos medo, também.
Sócrates teve medo quando os jovens passaram a escrever; o autor do Eclesiastes alertou para a loucura dos livros sem fim; a imprensa foi tratada como a prostituta do saber; Jerônimo Squarciafico (impressor do século 15) já dizia que a abundância de livros torna o homem menos estudioso; a primeira geração televisiva foi taxada de alienada.
Olhando pelo outro lado, Silvio Meira é da opinião que “empresas e escolas, instituições em geral, assustadas com a democracia das redes sociais, uma espécie de 1968 online, resolveram se esconder do ‘problema’, e por muito tempo. Estão muito atrasadas no aprendizado da nova ‘linguagem’. O resultado? os jovens saíram na frente e estão à frente, onde vão continuar por muito tempo. E isso é muito bom, sejam quais forem as consequências.”
O fato, contabilizável e incontestável, é que nunca se leu e se escreveu tanto. Mesmo que confinada em 140 caracteres, os nativos digitais formam a geração mais letrada e mesmo literária desde a Revolução Industrial.
Um dos replicadores de Carr, Clay Shirky, acha que a abundância é motivo de otimismo, e que “demente” são os que não conseguirem fazer a transição para esse novo modo de pensar. Ele argumenta que “as tecnologias que tornam a escrita abundante sempre exigem novas estruturas sociais para acompanhá-las”, e lembra que a invenção da imprensa por Gutenberg dizimou algumas formas tradicionais de expressão, mas amplificou enormemente a força da palavra escrita. No que diz respeito ao métier de quem vive da palavra, como os editores, é preciso se dar conta, o quanto antes, de que o digital também vai aposentar algumas formas de expressão e tornar redundantes alguns segmentos da indústria editorial, como a imprensa fez com os sermões e os monges copistas. Alguns vão cair, mas, no final, a indústria, e a palavra, vão se erguer.
Ou talvez ficaremos todos dementes, mesmo.
Julio Silveira é editor, escritor e curador. Fundou a Casa da Palavra em 1996, dirigiu a Nova Fronteira/Agir e hoje dedica-se à Ímã Editorial, no Brasil, e à Motor Editorial, em Portugal. É atual curador do LER, Festival do Leitor.
** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.
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