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Farenheit 451: porque os livros devem incomodar
PublishNews, 05/10/2012
Farenheit 451: porque os livros devem incomodar

“Um livro é uma arma carregada na casa vizinha”, explica o bombeiro capitão Beatty, ao justificar o novo papel destinado aos bombeiros em uma sociedade sem livros: “Queime-o. Descarregue a arma. Façamos uma brecha no espírito do homem. Quem sabe quem poderia ser alvo do homem lido? Eu? Eu não tenho estômago para eles, nem por um minuto. E, assim, quando as casas finalmente se tornaram à prova de fogo, no mundo inteiro – você estava certo em sua suposição na noite passada –, já não havia mais necessidade de bombeiros para os velhos fins. Eles receberam uma nova missão, a guarda da paz de espírito, a eliminação do nosso compreensível e legítimo sentimento de inferioridade: censores, juízes e carrascos oficiais. Eis o nosso papel, Montag, o seu e o meu”.

É assim que o capitão Beatty explica ao bombeiro Guy Montag em Farenheit 451, de Ray Bradbury (1920-2012) – recém-lançado pela editora Globo (tradução de Cid Kipnel) – a sua missão: destruir todos os livros, apagar completamente seus vestígios e prender qualquer um que ouse ter ou ler um livro. É preciso acalmar, silenciar, uniformizar e padronizar – com máquinas que cuidam da química do corpo humano e telas e fones que garantem um onipresente controle eletrônico nas casas – contra o risco do pensamento, da dúvida, do prazer, da tristeza, do choro, das lágrimas e da revolta que os livros e sua leitura suscitam. Em busca de uma felicidade coletiva, este é o preço a pagar. “Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?”, pergunta-se Beatty.

Publicado em 1953, Farenheit 451 pode ser lido como uma distopia, o contrário da utopia – como escreve o crítico literário Manuel da Costa Pinto em seu interessante texto de introdução – diante do início da era da sociedade de massas e da indústria cultural, mas também frente à Guerra Fria, à Guerra da Coreia e à ameaça de hecatombe nuclear (a referência a uma guerra genérica é permanente no livro).

Mas datar o livro e entender o seu contexto, se uma crítica à sociedade norte-americana (em pleno macartismo) ou ao sistema soviético (ainda sob Stalin), em nada tiram o interesse, a força e a intensidade literária que sua leitura oferece e propõe hoje.

É no encontro com Clarisse McClellan, sua vizinha, que Montag descobre o valor de conversar à toa, andar a pé, observar as pessoas e os jardins, olhar o céu, divagar, imaginar e assim por diante, na relação de ações e tarefas sem utilidade. A partir deste encontro, da visão de uma senhora que preferiu ser queimada com os próprios livros e da descoberta da leitura, a vida de Montag vai mudar até ele se perder completamente.

Perder-se no sentido da advertência do chefe dos bombeiros sobre os livros: “Bem, Montag, pode acreditar, no meu tempo eu tive de ler alguns para saber do que se tratava, e lhe digo: os livros não dizem nada! Nada que se possa ensinar ou em que se possa acreditar. Quando é ficção, é sobre pessoas inexistentes, invenções da imaginação. Caso contrário, é pior: um professor chamando outro de idiota, um filósofo gritando mais alto que seu adversário. Todos eles correndo, apagando as estrelas e extinguindo o sol. Você fica perdido”.

E assim, perdido e caçado após promover atos de sabotagem contra outros bombeiros, Montag chega a um bosque fora da cidade onde refugiados vagam como nômades e mantêm vivos na memória livros inteiros.

O livro se chamaria inicialmente The Fire Man. No posfácio, o escritor Ray Bradbury lembra do processo de escrever o livro e uma curiosidade meio cômica do cotidiano do seu trabalho: “Eu não sabia, mas estava literalmente escrevendo um romance barato. Na primavera de 1950, escrever e finalizar a primeira versão de The Fire Man, que mais tarde se tornou Farenheit, 451, custou-me nove dólares e oitenta em moedas de dez centavos”.

A partir de 1941, ele trabalhava datilografando em sua garagem em Venice, California, mas as filhas tinham, claro, uso melhor para a garagem e o tempo do pai e ele foi obrigado a buscar outro local de trabalho. Encontrou uma sala de datilografia no porão da biblioteca da Universidade da California, em Los Angeles, onde havia cerca de vinte máquinas de escrever Remington e Underwood alugadas a dez centavos cada meia hora e que funcionavam com uma moedinha acoplada a um relógio:

“Você enfiava a moeda, o relógio tiquetaqueava feito louco, e você datilografava furiosamente para terminar antes que se esgotasse a meia hora. Assim, eu tinha uma dupla motivação: pelas crianças, eu era levado a sair de casa e, pelo cronômetro de uma máquina de escrever, eu deveria me tornar um maníaco no teclado. Tempo realmente era dinheito. Terminei a primeira versão em cerca de nove dias”.

E foi ali, trabalhando e zanzando pela biblioteca, que Bradbury escreveu o livro. Em um diálogo com Mildred, a esposa que quer ser deixada em paz diante da perturbação introduzida por Montag, o personagem retruca:

“- Deixar você em paz! Tudo bem, mas como eu posso ficar em paz? Não precisamos que nos deixem em paz. Precisamos realmente ser incomodados de vez em quando. Quanto tempo faz que você não é realmente incomodada? Por alguma coisa importante, por alguma coisa real?”

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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