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Politicamente incorreto
PublishNews, 23/04/2012
Politicamente incorreto

É impressionante ver a reação do público quando se trata de falar e ilustrar com alguns exemplos os efeitos do chamado “politicamente correto” na edição de livros para crianças e jovens. A perplexidade, estranheza, surpresa e incredulidade são alguns dos sentimentos visíveis quando os relatos vão se sucedendo, seja por parte dos autores, seja por parte dos editores, ilustradores, revisores, de todos que atuam na cadeia editorial do livro.

O que mais chama a atenção é contrapor essas reações – pontuais – ao peso e presença de uma produção editorial fortemente marcada pela concepção “politicamente correta”. Isto é, uma visão de mundo construída em nome de garantias dos direitos civis, à custa do cerceamento dos direitos individuais, o que expõe as contradições do liberalismo e a abstração da democracia, e não por acaso se origina no centro do mundo global, os EUA. As aspas se justificam porque entendo que o rótulo se estende para além dessa forma de pensar o mundo e abriga um leque de valores, de visões de mundo conservadoras, preocupadas na reafirmação do status quo.

O que está em jogo por trás disso também são concepções de infância, de jovens, de educação, de leitura e de literatura, onde a intenção e os objetivos prévios põem a serviço e subordinam todo e qualquer conteúdo, no caso, aqui, destinado à criança e ao jovem. A censura, a deformação da realidade, ou a sua conformação de acordo com um dado modelo, seja ele político ou religioso, impõem uma forma de ver o mundo. Na verdade, um mundo idealmente construído, “limpo”, sem espaço para as diferenças e singularidades do mundo real.

A questão que mais espanta é como essa concepção tomou corpo e de fato se espalhou, já faz algumas décadas, dando o tom a grande parte da produção de livros para crianças e jovens. É assustador perceber que muito do que é lido obedece e se subordina a esta orientação e que a exceção é o outro lado. Mas, como nada é eterno, é interessante perceber uma movimentação – que não é de hoje – tomando corpo e se ampliando em esferas cada vez mais decisivas e amplas.

Na semana passada, participei de uma mesa junto com Leo Cunha, num evento promovido pela Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte, o 7º seminário Beagalê. A chamada do evento foi a frase “Ter em mãos o livro literário é defrontar-se com o desequilíbrio”, de Bartolomeu Campos de Queiros. O objetivo? Discutir os efeitos do politicamente correto nos livros para crianças e jovens, da dificuldade do tratamento dos temas incômodos. Auditório cheio, em torno de 150 pessoas entre professores, bibliotecários, estudantes de letras e autores. O tom? Preocupação, necessidade de entender e de resistir e reverter esse difícil quadro que, de acordo com o depoimento de muitos, não só se mantém como é cada vez mais forte.

É fundamental parabenizar os organizadores pelo acerto em colocar o foco numa atividade de formação de leitores sobre a questão, que talvez seja uma das que mais afeta a aproximação das crianças e os jovens da leitura promovida não só nas escolas. O lema escolhido conduz sem subterfúgios e sem concessões ao cerne, ao nó da questão. Isto é, ao terreno que desestabiliza, desequilibra, incomoda, mexe, perturba e interroga pelas mais diferentes vias (seja pela identificação, pelo humor, pelo drama...): a literatura.

Do lado oposto da concessão, do artificialismo, do estereótipo, da previsibilidade, do discurso moralizante, pedagógico, dos temas da moda, da pseudoproteção, da trama plana, do “politicamente correto”, temos a literatura, que não poupa o leitor de colocá-lo frente a situações que possam provocar seu desequilíbrio. Estamos no terreno da literatura, cuja matéria-prima é a vida com suas mazelas, suas contradições, seus desafios, as perdas, o abandono, o racismo, a sexualidade... E a literatura, assim como a vida, não aceita encomendas.

No mundo dos livros, “poupar”, “proteger” as crianças dos dramas da vida significa exercer uma censura prévia que não se exerce quando, por exemplo, se trata da televisão. O livro continua sendo um estigma no sentido mais tradicional dentro de uma cultura de não leitores e dentro de uma escola que, lembrando mais uma vez Bartô, é essencialmente conservadora. Não é fácil, precisa ter repertório para lidar com crianças e jovens, principalmente quando se trata dos “temas difíceis”. Eis uma palavrinha-chave: repertório.

A literatura é talvez uma das maiores fontes para a construção de um repertório. Na falta de uma formação leitora fica muito difícil elaborar os critérios necessários para definir escolhas, para discernir sobre qualidade e para construir uma visão crítica frente ao texto e ao mundo. Prerrequisitos para não fazer concessões, para por em primeiro plano a qualidade literária, quando se fala em leitura e formação de leitores, para ousar no limite das possibilidades.

Abrir a Folinha de sábado e dar de cara com uma edição dedicada a discutir exatamente por que “o politicamente incorreto” agrada jovens leitores é sintomático. E corresponde a um momento no qual a qualidade de uma parcela cada vez mais significativa do mercado editorial se impõe, puxada, sem dúvida, pelos critérios das compras do PNBE, mas também por vários sucessos, com a chancela dos jovens leitores.

Eventos como o Beagalê, que promovem a difusão e ampliação dessa discussão, são canais promotores de uma ampliação do repertório, assim como facilitadores de reflexão e revisão dos critérios de escolha utilizados pelos mediadores. Aproximar jovens leitores de livros de qualidade, com os quais eles se identifiquem, que sejam janelas abertas para outros mundos, que promovam sonhos e fantasias, que mantenham sua curiosidade, que os desequilibrem, que os surpreendam, que os tirem dos eixos, é provavelmente uma das únicas vias do êxito de se formar futuros leitores literários críticos e autônomos.

E quem sabe não cheguemos logo à evidência de que nada mais incorreto do que o politicamente correto?

Em tempo: abertas as inscrições na Universidade do Livro para o curso “A ilustração na literatura infantil e juvenil”. Para mais informações entre no site.

Dolores Prades é editora, gestora e consultora na área editorial de literatura para crianças e jovens. É membro do júri do Prêmio Hans Christian Andersen e curadora da FLUPP. É também coordenadora do projeto Conversas ao Pé da Página - Seminários sobre Leitura, e da área de literatura para crianças e jovens da Revista Eletrônica Emília. Sua coluna pretende discutir temas relacionados à edição e ao mercado da literatura para crianças e jovens, promover a crítica da produção nacional e internacional deste segmento editorial e refletir sobre fundamentos e práticas em torno da leitura e da formação de leitores. Seu LinkedIn pode ser acessado aqui.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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