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Uma história de guerra, livros, bibliotecas e arquivos em Varsóvia
PublishNews, 10/06/2011
Varsóvia: guerras, livros e bibliotecas

Muitos são os roteiros possíveis para passear na bela cidade de Varsóvia, capital da Polônia. A “Stare Miasto” (cidade velha) e a “Trakt Królewski (rota real) são dois dos lugares aos quais se pode retornar muitas vezes, assim como o circuito Chopin e vários museus e imponentes palácios. Particularmente bonitos são os parques e Varsóvia, como muitas grandes metrópoles, valoriza os pedestres e mantém um eficiente transporte público, que tem como eixo o bonde – atração suplementar para um turista brasileiro.

Mas certamente um roteiro crucial na cidade é andar pelas dezenas de monumentos, placas e lugares de memória – além de alguns museus – sobre a história da Segunda Guerra Mundial, da presença judaica na cidade e da destruição do judaísmo polonês. Estes monumentos, placas e lugares são como uma floresta seca de cicatrizes urbanas. No imperdível Museu do Levante de Varsóvia, a vista de cima de uma torre dirige o olhar para os poucos prédios remanescentes da destruição que deixou em ruínas cerca de 85% da cidade, particularmente após o levante anti-nazista em 1944, memória que a cidade preserva com sobriedade e reverência.

Um destes edifícios remanescentes abriga o Instituto Histórico Judaico Emanuel Ringelblum, fundado em 1947, localizado no centro de Varsóvia em um prédio de 1936 que abrigaria uma biblioteca inaugurada em 1881 na “Grande Sinagoga” na Rua Tlomackie (vizinha ao prédio do Instituto). Varsóvia foi o mais importante núcleo cultural e social judaico no mundo na primeira metade do século 20. Só ali existiam cerca de 400 sinagogas, das quais apenas uma restou. A população judaica da cidade, de cerca de 380 mil judeus, foi quase inteiramente deportada e morta nos campos de extermínio. Os nazistas liquidaram o acervo da biblioteca pouco após a invasão em setembro de 1939, depois incendiaram o prédio e destruíram a “Grande Sinagoga”.

O Instituto, erguido sobre o prédio restaurado após a guerra, é hoje um arquivo, biblioteca com 70 mil volumes e centro de estudos que abriga pesquisas e exposições permanentes e temporárias. Seu acervo mais célebre são os Arquivos Emanuel Ringelblum, considerado “Memória da Humanidade” pela Unesco, ao lado de dois outros tesouros históricos da capital polonesa, relativos a Chopin e Copérnico. A história do historiador polonês judeu Emanuel Ringelblum e do arquivo são contadas em um extraordinário livro lançado pela Editora Companhia das Letras. Quem escreverá nossa história? Os arquivos secretos do gueto de Varsóvia, do historiador norte-americano Samuel D. Kassow, é uma biografia intelectual de Ringelblum e uma narrativa sobre a trajetória do arquivo clandestino que ele e um grupo de colaboradores mantiveram dentro do gueto de Varsóvia até 1943 e a sua destruição (do qual sobrou um único e pequeno trecho de muro).

O Oyneg Shabes – nome em código do arquivo – criou uma rede de colaboradores para trabalhar na produção, sistematização, arquivamento e no processo de esconder os documentos. Ringelblum não apenas reuniu tudo o que pudesse documentar o processo de destruição – para que esta história se tornasse um dia conhecida – como também incentivou pessoas a registrarem e contarem detalhes da vida das pequenas comunidades e cidades de onde os judeus foram expulsos para serem enviados ao gueto de Varsóvia (que chegou a 450 mil pessoas). Durante o Holocausto, conta Kassow, centenas de pessoas escreveram e deixaram registros, entre diários, simples anotações do cotidiano, mas também literatura e poesia. “Embora a realidade da guerra ultrapassasse a pior peça de horror, os escritores do gueto compreendiam que a catástrofe não eliminava a importância da literatura e da poesia”, escreve o autor.

Os registros, por mais subjetivos que fossem, nunca perdiam a perspectiva e a moldura maior de integrar um arquivo que documentasse os crimes nazistas e as diversas formas de resistência civil e militar, da organização de refeitórios coletivos aos preparativos da revolta que eclodiu em abril de 1943 – primeiro levante armado dentro da Europa ocupada – liderado por Mordechai Anielewicz. Esta história é hoje lembrada em diversos lugares na cidade, no imponente monumento à Revolta do Gueto de Varsóvia, em vários outros monumentos onde ficava o esconderijo principal dos revoltosos, na Rua Mila, número 18, e no nome de uma importante avenida da cidade, a Anilewicza.

Antes da destruição do gueto, Ringelblum e sua equipe esconderam o arquivo em caixas de alumínio e latões de leite e o enterraram em três lotes, enviando mensagens clandestinas com a sua localização. Dois lotes foram encontrados em 1946 e 1950, totalizando cerca de 35 mil páginas, e constituíram um dos núcleos documentais do Instituto Histórico Judaico. O terceiro lote jamais foi encontrado. O Instituto já publicou parcialmente os arquivos, projetando concluir em breve sua publicação integral, que está principalmente em polonês e idish.

Ao contar a história de Ringelblum e dos intensos debates políticos, ideológicos e intelectuais dos anos 1920 e 1930, o livro narra ao mesmo tempo uma história de máxima densidade cultural e de terrível destruição. Ringelblum era extremamente ativo em Varsóvia: professor, guiava os alunos em roteiros a pé pela cidade, era um ativista social e militava nas fileiras do Linke Poalei Tzion, o partido sionista de esquerda, engajado nos embates do socialismo judaico e polonês e do sionismo. Estas histórias do pré-guerra estão também imortalizadas nos livros do escritor Isaac Bashevis Singer, prêmio Nobel de literatura, do qual – apenas para iniciar – podem-se ler as histórias autobiográficas de Amor e exílio. Memórias(L&PM, 1985) e No tribunal do meu pai (Companhia das Letras, 2008).

Segundo Kassow, o arquivo cuidava ao mesmo tempo de cumprir um compromisso social e coletivo, mas também de lembrar as vidas individuais que estavam sendo destruídas. Sobretudo, escreve ele, os organizadores e colaboradores do arquivo eram pessoas “dotadas de um profundo senso de engajamento político e compromisso intelectual’.

Atualmente, o Instituto sedia – além de uma exposição sobre o gueto de Varsóvia – a amostra “The World Hidden in Books. Earley Hebrew Prints from the collection of the Jewish Historical Institute”, que exibe diversas edições judaicas do início da Era da imprensa, entre elas a primeira impressão de Bíblia hebraica com comentários, produzida em Veneza em 1517-1518 e outras edições depois impressas na Itália e em vários países da Europa. Com esta gama de atividades, entre livros e arquivos, o Instituto da Rua Tlomackie mantém viva uma história que ainda ecoa com intensidade doídas memórias e cicatrizes.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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