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O jornal em papel, a República e o casaco de pele
PublishNews, 18/02/2011
O jornal em papel e o casaco de pele

“O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal? A humanidade desde os primeiros tempos tem caminhado em busca de um meio de propagar e perpetuar a ideia. Uma pedra convenientemente levantada era o símbolo representativo de um pensamento. A geração que nascia vinha ali a contemplar a ideia da geração aniquilada”, escreveu Machado de Assis na crônica “O jornal e o livro”.

Depois, em outra etapa na busca por perpetuar as ideias, uma revolução trouxe a imprensa e o livro, “um meio melhor, indestrutível, móbil, mais eloquente, mais vivo, mais próprio a penetrar arraiais de imortalidade”. O livro era um progresso, mas não era a tribuna comum, aberta a todos, como o jornal. O livro seria moroso, escreveu Machado de Assis, esfriando as discussões e as idéias; já o jornal “anima-se e toma fogo pela presteza e reprodução diária”.

O texto (disponível em www.dominiopublico.gov.br) foi originalmente publicado no Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, em 1859. Naquela época e por muitas décadas, os escritores dependiam dos jornais não apenas para publicar sua literatura, mas também como trabalho e meio de sobrevivência. Não havia um mercado editorial, as tiragens eram pequenas, muitas vezes bancadas pelos autores e a circulação dos livros era muito restrita. Além disso, os jornais eram tribunas de causas liberais, republicanas e incendiavam a nascente opinião pública. O texto de Machado de Assis é uma exaltação deste novo papel do jornal no século 19.

Cento e cinquenta anos depois, não apenas se discute o futuro do livro (embora quase todos digam: o livro digital é livro...), mas é o jornal em papel que parece condenado à extinção (não vejo a mesma certeza diante da ideia de que um jornal digital é um jornal...).

Se você é leitor diário de jornal em papel, não anda com certa incômoda sensação de estar sendo anacrônico ou antiquado? Pois esta sensação tem me atormentado um tanto. Ler jornal na padaria junto ao café e pão com manteiga ainda é um raro prazer para quem cultiva esse hábito. Mas cada vez vejo menos pessoas lendo jornal em locais públicos, incluindo bancos de praças, cafés e padarias. Tenho achado o jornal meio desajeitado, com suas folhas imensas, que exigem uma estudada estratégia para segurá-lo de pé e ler (ou diferentes formas de dobrá-lo), parece sujo ao soltar tinta na mão e às vezes manchar a camisa. Isso quando um ventilador ou um vento inesperado não tratam de fazer voar as páginas, gerando aquela situação cômica de correr atrás de uma página que se abre, se enrola, se dobra e, pior, fica quase sempre imprestável à leitura.

Mas, mais do que tudo, o hábito persistente de ler jornal em papel parece um símbolo da leitura em papel do século 20, um divisor de águas entre quem vai ultrapassar o limiar da era digital e quem vai ficar para trás, como aconteceu com tantas outras mudanças tecnológicas.

Outro dia tive um pesadelo acordado enquanto lia na padaria meu jornal próximo a um grupo de jovens. Imaginei um deles se levantando e me acusando em voz alta de ser tremendamente egoísta e antiecológico ao desperdiçar tantas árvores para ler um jornal que eu jogaria fora dali a alguns minutos. Me lembrei – pesadelo mesmo – dos ataques públicos às madames que usavam casaco de pele. Este foi o limite aterrorizante do meu constrangimento, talvez desencadeado pelo lançamento, há pouco, do primeiro jornal já pensado e escrito para ler em meio digital.

É claro que estas mudanças têm seus ritmos e tempos e os meios novos convivem com os antigos por anos, décadas. Mas mesmo me identificando como um leitor do século 20, acredito que o jornal diário em papel vai se tornar um meio restrito, quase um luxo antipático.

Mas esta não é uma crônica melancólica ou de despedida. O que mais me atrai em um jornal – característica que outros dirão fraqueza, seja digital seja ideológica – é que ele nos apresenta todos os dias de manhã um amplo e variado painel do mundo. Sim, jornais diários – com esta proposta – surgiram antes do telefone, do rádio, da televisão, da internet... É um retrato parcial, um fragmento, que vai da política nacional à internacional, da cidade à economia, do esporte à cultura, passando por quadrinhos, crônicas, previsão do tempo, editoriais fortes e bons artigos e análises.

Efêmero, limitado, parcial, ideológico... O jornal permite ler o que parece importante e também o que é desimportante, e é exatamente isso o que mais atrai, essa mistura de tirinha do Recruta Zero com a crônica do Veríssimo ou do Hatoum ou então das opiniões políticas com a sátira diária do Zé Simão. Tenho minhas dúvidas se isto é simplesmente transferível para o meio digital.

Muitos poderão argumentar que esta ordem de mundo do jornal é conservadora, é o retrato parcial e ideológico de “um dia”, medida de tempo dos acontecimentos que a velocidade da internet baniu faz tempo, ainda mais que os jornais chegam no dia seguinte. Também o modelo de grandes e tradicionais jornais, com famílias proprietárias e suas opiniões, está em cheque. O noticiário dos jornais paulistas, por exemplo, foi visivelmente desequilibrado nas últimas eleições presidenciais e dezenas de sites se tornaram fonte preciosa e indispensável para uma visão minimamente equilibrada. Neste sentido, jornais em papel não dão mais conta de uma ordem que ruiu.

Os jornais ganharam esta forma e este papel na segunda metade do século 19. Eles correspondiam a um novo mundo que ganhava consciência de si, interligado e interconectado, seja por telégrafo seja por ferrovia, em que “notícias” se tornaram uma categoria do cotidiano dos cidadãos. Os jornais assumiam causas e eram agentes de camadas sociais novas, como os intelectuais, que tinham causas republicanas (ou anti-republicanas). “O jornal é a verdadeira forma da república em pensamento. É a locomotiva intelectual em viagem para mundos desconhecidos, é a literatura comum, universal, altamente democrática, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das idéias e o fogo das convicções”, escreveu ainda Machado de Assis em 1859, e traz em si o “gérmen de uma revolução”, literária, mas também social e econômica.

O mundo conectou-se e interligou-se até o segundo e o instante serem não só a medida de tempo, mas também a de espaço neste novo território da internet. As possibilidades são fantásticas. Continuarei a ler o jornal em papel na padaria junto ao café e pão com manteiga, enquanto o pesadelo de ser atacado por um comando digital não superar este prazer. Mas a verdade é que eu me sento cada vez mais no canto, procuro não abrir demais as páginas e me sinto usando um casaco de pele...

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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