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Belènzinho, 1910, memórias da cidade e das leituras de Jacob Penteado
PublishNews, 03/12/2010
O Belenzinho e as leituras de Jacob Penteado

“Na verdade, o Belém, devido à sua altitude, ar puro, vastos arvoredos, era procuradíssimo pelas opulentas famílias de uma São Paulo que vive, hoje, apenas na memória dos velhos. Sua altitude é, em média, de 750 metros, atingindo o máximo na Vila Gomes Cardim, 775 metros. Inúmeras quintas e pomares, estâncias de cura e chácaras para fins de semana ali se encontravam, pertencentes a vultos importantes da vida paulistana”.

Este é um relato de memória da infância no bairro do Belenzinho, em São Paulo, de cem anos atrás, escrito pelo cronista Jacob Penteado no clássico Belènzinho, 1910: retrato de uma época, publicado pela primeira vez em 1963 pela Martins. O bairro era um local de fábricas de vidro e de cristais (como a Santa Marina) e de tecelagens, como, mais tarde, a Moinho Santista, em cujo antigo espaço a cidade de São Paulo dá as boas vindas, amanhã, com muita festa, à inauguração do Centro Cultural e Desportivo Sesc Belenzinho ou, simplesmente, Sesc Belenzinho.

As unidades do Sesc na cidade e no Estado são daquelas poucas instituições – de vocação inteiramente pública – nas quais a frequencia diária ou ocasional faz uma diferença efetiva na qualidade de vida coletiva da cidade. Mais do que tudo, a rede Sesc criou e sedimentou um novo patamar de referência de atividades que vão do teatro ao lazer, das lanchonetes à monitoria e assim por diante, estendendo-se a tudo o que tem a marca Sesc, incluindo os confortáveis e bem equipados espaços de leitura. Existe, de fato, um padrão Sesc de atividades, de cultura, de lazer e de civilidade que enche de orgulho cidadão a cidade e o Estado.

O bairro do Belenzinho ganhou seu primeiro cinema há exatos cem anos, em 1910/1911, o Cinema Belém, na Avenida Celso Garcia e uma das “instituições” culturais mais conhecidas do bairro foi o “Minarete”, um chalé na Rua 21 de Abril, freqüentado por jovens escritores como Monteiro Lobato e Godofredo Rangel. Funcionário de carreira dos Correios e da Escola de Comércio Álvares Penteado, Jacob Penteado (1900-1973) foi escritor, memorialista, tradutor, organizador de coletâneas e enciclopédias e deixou, além de Belènzinho, 1910 (NarrativaUm/Carrenho, 2003) – prêmio Jabuti de 1963 na categoria Biografia & Memória – , os livros Memórias de um Postalista e Martins Fontes, uma alma livre, prêmio Jabuti de 1969. Entre as antologias por ele organizadas, pode-se citar Obras-Primas do Conto Fantástico, Jóias da Literatura Infantil e Obras-Primas do Conto de Terror, todos editados pela Martins nos anos 1950.

Jacob Penteado foi uma criança operária, história que ele conta em capítulos memoráveis como “Os pequenos mártires da industrialização”, descrevendo as pungentes condições de trabalho nas fábricas no início do século, incluindo os castigos corporais que não poupavam os pequenos trabalhadores, anos antes de a cidade ser paralisada pela greve de 1917, nas quais os trabalhadores reivindicavam, entre outras coisas, a abolição da exploração dos menores de 14 anos.

Mesmo cumprindo extensas jornadas na fábrica, Penteado foi um leitor apaixonado desde criança e suas memórias trazem inúmeros trechos que falam de livros e de leitura na São Paulo de 1910. Ao se referir aos colegas operários adultos na fábrica de vidro, ele conta uma história comovente: “Eu não tinha queixa deles, pois me consideravam bastante, não só por ser enteado de um dos seis, mas também porque recorriam às minhas ‘luzes’, frequentemente, para explicar-lhes ou ler-lhes algo que não haviam entendido, nos jornais ou nos livros”.

Segue o relato: “Apesar de minha pouca idade (muito precoce), lia e escrevia em português, italiano e espanhol, graças à minha permanência na Argentina e na Escola ‘Dante Alighieri’” (uma escola que existiu no Brás) e “Muitas vezes, quando ficávamos à espera de que o vidro fundisse, eu reunia meus companheiros de sofrimento e ensinava-lhes as primeiras letras ou lia-lhes livros de histórias. Isso não só me conferia algum prestígio mas me proporcionava algo de sonante, pois o dinheiro era bem escasso naquelas alturas. Aos vidreiros, eu cobrava três mil réis por mês, para três aulas de uma hora por semana”.

Ao lembrar, ainda, da infância e da escola Dante Alighieri, conta ele dos anos 1909/1910: “Aos sábados, o prof. Basile, antes de encerrar a aula, lia-nos uma fábula de La Fontaine. Nós devíamos interpretar o texto, empregar a imaginação e trazer o mesmo trabalho, na segunda-feira, descrito com palavras nossas. Para muitos, não havia dificuldade, apresentavam uma reprodução que satisfazia o exigente professor, mas, para outros, isso constituía um verdadeiro suplício, e apelavam para mim. Iam à minha casa, que ficava perto da Escola, e lá, em poucos minutos, eu redigia um versão da fábula para cada um, procurado, cuidadosamente, empregar sinônimos e inverter a ordem dos elementos, variar de sintaxe, em suma, evitar que se descobrisse o ‘estilo’ do autor. Essa facilidade de redação proporcionava-me certas vantagens. Alguns davam-me uns níqueis para o cinema, outros, filhos de negociantes, merceeiros ou com bancas no Mercado, forneciam-me frutas estrangeiras, queijo, doces, petisqueiras que eu não podia adquirir”.

Penteado lia de Julio Verne a Emilio Sálgari, e lembra que nenhum livro o influenciou tanto como “Os Miseráveis”, emprestado por um vizinho barqueiro. Além das leituras em livros emprestados, “todos os meses, retirava quinhentos réis do meu magro ordenado para adquirir uns livrinhos que continham resumos de óperas, de obras da literatura mundial, de história, geografia, biografias, com o que adquiri o gosto, ou o vício, da leitura. A seguir, passei a cultuar Dickens, Dumas, Balzac, Stendhal, Alencar, Zola e Lima Barreto”.

Estas memórias de Jacob Penteado vividas em 1910 no Belenzinho, de uma criança operária que fez uma bela trajetória intelectual e literária – e legou um livro que se tornou um clássico da memória paulistana –, são, neste momento de festa para a cidade, uma evocação à altura da festiva inauguração de um Sesc chamado Belenzinho.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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