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O Diário de Anne Frank, entre o extraordinário e o banal
PublishNews, 19/11/2010
A importância literária do diário de Anne Frank

O lançamento em português de A História de Eva (Record, 2010) – memória do Holocausto de Eva Schloss, cuja mãe se casou depois da guerra com Otto Frank, pai de Anne Frank –, remete ao Diário de Anne Frank, certamente um dos livros que mais impacto e influência teve sobre gerações de leitores, especialmente jovens, que cresceram lendo, se identificando e se emocionando com a história do anexo, o esconderijo onde a família Frank passou pouco mais de dois anos escondida em Amsterdã durante a Segunda Guerra Mundial. Um levantamento de 1996 indicava que 50% dos jovens norte-americanos do ensino médio haviam lido o diário. Há ainda o belíssimo livro de Alison Leslie Gold e Miep Gies, a holandesa que teve papel central no suporte ao esconderijo dos Frank e dos outros quatro ocupantes do anexo (Anne Frank: o outro lado do diário, Best Seller, 1987).

Também recém-lançado, um livro surpreendente é Anne Frank: A história do diário que comoveu o mundo, da ensaísta e escritora norte-americana Francine Prose (Zahar, 2010). A autora conta a história de como o diário foi escrito, do impressionante trabalho testemunhal e literário de Anne, das diferentes edições do livro, da peça em Hollywood, do filme, da memorialização da história no museu na casa da família em Amsterdã, questões do uso do diário em sala de aula, além de um capítulo sobre o negacionismo nazista contra o diário.

Testemunho singular do Holocausto e dos anos da guerra na Holanda, o diário ganhou ao longo dos anos leitura e recepção crescentemente universalista até se tornar uma metáfora da vida de uma jovem em tempos sombrios e se transformar em precursor de um gênero do qual é sempre a referência. O livro é lido como um espelho universal da condição de adolescente, escreve Francine, no qual meninos e meninas podem ver uma descrição extremamente condensada da alienação, da solidão e das torrentes de sofrimento sem causa concreta que definem a adolescência na cultura ocidental no século 20. É também um livro no qual os mais velhos reconhecerão sua própria adolescência, os conflitos entre os eus autênticos e as máscaras sociais. “O que torna o diário de Anne tão útil, é a decência fundamental da autora, sua crença de que a dignidade humana prevalecerá”, escreve Francine ao compreender porque o diário se tornou referência universal para todas as causas humanistas.

Mas mais do que tudo, Francine Prose recoloca o precioso valor literário do diário em suas circunstâncias históricas específicas. Anne Frank era uma escritora, escreve ela, e a aparente naturalidade do seu estilo é uma realização artística primorosa. O diário tem uma história curiosa. O primeiro texto (redigido no célebre diário com capa de pano xadrez vermelho, cinza e castanho) foi escrito entre 12 de junho e 5 de dezembro de 1942, recomeçou em um caderno de exercícios de capa preta em 22 de dezembro de 1943 e seguiu até 17 abril de 1944; um terceiro caderno de exercícios foi de 17 de abril de 1944 até três dias antes da prisão em 14 de agosto daquele ano.

Mas a própria Anne, em 1944, reescreveu seu diário e acrescentou várias anotações cobrindo a lacuna do ano de 1943, em 324 folhas soltas de papel. Este texto foi reescrito, enfatiza Francine, com a intenção não somente de escrever um diário de menina, mas como registro e testemunho dos anos de terror no esconderijo, um livro de memória em forma de diário que ela chamaria “O anexo secreto”. A reescrita tornou o texto mais impressionante, não menos autêntico, o relato se tornou mais profundo, reflexivo e sereno, afirma a autora, para quem o conhecimento desta reescrita potencializa muito a apreciação literária do diário.

Sobrevivente do Holocausto, o pai Otto encontrou o conjunto dos cadernos e folhas avulsas – guardados por Miep Gies – e organizou uma “mistura’ editada por ele, que se tornou o Diário de Anne Frank, cortando o que lhe pareceu excessivamente banal e alguns trechos que ele considerou íntimos demais da adolescência de Anne e em relação à convivência familiar no anexo. Otto o fez com a melhor das intenções para tornar público o registro da sua filha assassinada pelo nazismo, junto com a esposa Edith e a filha mais velha Margot, e sem sua iniciativa o diário jamais seria conhecido (os originais dos textos do diário e da sua reescrita estão guardados em um arquivo holandês e foram publicados na íntegra, nos anos 1980, em um livro que expôs o diário, a reescrita de Anne e a edição de Otto).

Francine Prose acredita que um apelo do ministro holandês da Educação, Arte e Ciência, em março de 1944, para estabelecer um arquivo nacional com diários e outros registros comuns da guerra com o objetivo de que as gerações futuras compreendessem os sofrimentos da população – que os Frank ouviram no rádio em seu esconderijo – teria sido decisivo para Anne reescrever o diário e concebê-lo como um testemunho que deveria se tornar público.

No pós-guerra, Otto Frank buscou publicar o diário, mas, escreve Francine, “o manuscrito foi rejeitado por todos os editores que o leram; nenhum deles imaginava que leitores comprariam o diário íntimo de uma adolescente que fora morta na guerra. Além disso, os holandeses não tinham nenhum desejo de ser lembrados do sofrimento que haviam suportado tão recentemente”.

Após um artigo sobre o diário e trechos divulgados em uma revista, ele foi publicado em 1947 com uma tiragem de 1,5 mil exemplares. O diário teve cinco reimpressões até 1950 (e uma na Alemanha), quando ficou fora de catálogo até 1955, e foi ganhar nova vida após ser editado nos Estados Unidos.

Mesmo nos EUA, o diário foi inicialmente rejeitado por quase todas as editoras importantes, que o consideraram específico e pouco atraente. Artigos positivos na Commentary e na New York Review os Books, no entanto, abriram o caminho para a edição prefaciada por Eleanor Roosevelt, e logo se tornou um best-seller. A revista Time estampou que o diário era “uma das histórias mais comoventes que qualquer pessoa, em qualquer lugar, conseguiu contar sobre a Segunda Guerra Mundial”.

Francine Prose mostra que entre o diário de menina e o texto mais elaborado de 1944 se formou uma verdadeira autora, que compôs um arrebatador livro de memória. Segundo a autora, “persiste o fato de que só raramente se deu a Anne Frank o que lhe é devido como escritora. Com poucas exceções, seu diário nunca foi levado a sério como literatura, talvez por ser um diário, ou, mais provavelmente, porque sua autora foi uma menina. O texto foi discutido com um testemunho ocular, um documento de guerra, uma narrativa do Holocausto (...) e um trampolim para conversas sobre racismo e intolerância. Praticamente nunca, porém, foi visto com uma obra de arte”.

Conforme Francine: “A forma do diário – cartas com quebras, como quebras de capítulo, dando margem a lacunas no tempo e mudanças de assunto – permite a Anne passar suavemente da meditação para a ação, da narração e da reflexão para o diálogo e a cena dramatizada. Parte do que nos mantém lendo com tão embevecida atenção são as mudanças regulares, mas imprevisíveis, entre opostos de tom e conteúdo – entre domesticidade e perigo, entre o privado e o histórico, entre metafísica e alta comédia. Uma das mais intrigantes dessas oposições é a tensão entre o extraordinário e o banal, o extremo e o normal, o jovem gênio e a adolescente típica.”

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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