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Os livros de Sayuri, uma leitura com gosto de lágrima e de goiaba madura
PublishNews, 07/06/2010
Nesta semana, Roney fala sobre o livro de Lúcia Hiratsuka que já garantiu um lugar especial em meio à crescente edição de obras ficcionais e memorialísticas que têm em sua trama central histórias em t

“Parece um enterro. Mas ninguém morreu. No quintal, o sol bate forte no buraco cavado debaixo do abacateiro. As galinhas ciscam no monte de terra, como se tivessem descoberto uma mina de minhocas. As nuvens passeiam com preguiça. Nada de chuva. Se chovesse, tudo ficaria para outro dia”.

Começa assim Os livros de Sayuri, escrito e ilustrado por Lúcia Hiratsuka (Edições SM, Coleção Barco a Vapor, 2008). Esta narrativa infanto-juvenil conta a história de uma família nipo-brasileira no interior do estado de São Paulo durante os anos da Segunda Guerra Mundial. Em meio a um cotidiano rural, de tarefas domésticas e trabalho no campo, estão a relação de Sayuri com um livro muito especial e o permanente medo de uma batida policial que viria confiscar os livros escritos em japonês, língua então proibida.

O enterro do começo da história é o dos livros da família de Sayuri. “O pai pegou a pá e foi jogando terra. E a caixa ficou enterrada. Como se os livros estivessem mortos. Ou como se fossem tesouros? Os mortos não voltam. Mas e os tesouros? Voltam algum dia?”, pergunta Sayuri. “– Pai, nossos livros não têm nada de mais. – Como vão saber? Todos em japonês...”. E, assim, uma (inaceitável) restrição no contexto da guerra se torna a proibição oficial de uma cultura.

Mas ela, criança ainda não alfabetizada, esconde um livro, tesouro afetivo da família, presente da avó para a mãe quando esta era menina, avó que ficou no Japão e esperava a volta da filha, mas faleceu antes de reencontrá-la. Entre pequenas aventuras que incluem ter de mudar o esconderijo do livro, freqüentar uma escola clandestina para se alfabetizar em japonês e sonhar com a escola do governo cheia de crianças, está sempre a comovente relação de Sayuri com o livro secreto e a tentativa de decifrar seu título, entender do que se trata e sonhar com a leitura integral, reatando uma relação afetiva, histórica e geográfica com os avós e o Japão.

Os livros de Sayuri é baseado na memória da família da autora e na história da pouco conhecida exclusão e perseguição contra os imigrantes nipo-brasileiros em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. A forma como Lúcia Hiratsuka conta a relação de Sayuri com seu livro-tesouro, que deve permanecer escondido (da polícia), mas que ela quer ler e compreender (descobrindo a leitura aos poucos), guardar para a mãe e preservar e transmitir uma tradição familiar, é delicada e dramática e coloca este livro em um lugar especial em meio à crescente edição de obras ficcionais e memorialísticas que têm em sua trama central histórias em torno de livros e da leitura.

As descobertas de Sayuri pelo mundo das letras são permeadas pelas pequenas curiosidades da infância no mundo rural, com os livros e a leitura associados às formas e sabores da natureza.

“– Você precisa aprender a ler. Isso tem outro gosto, sabia?”, diz a mãe.

“– Que gosto? – perguntei. – De doce ou salgado?

Minha mãe riu. Pode ser doce, salgado, amargo. Ah, amargo não. Detesto amargo.

– Pode ter gosto de lágrima... – comentou ela.”

Em outro trecho, Sayuri se pergunta: “E o gosto de ter um livro escondido? Gosto de goiaba madura? Pode ser. Doce e amarrando um pouco na boca. Quando fico com medo de alguém descobrir, é um gosto esquisito. De abacate sem açúcar.”

Os livros de Sayuri tem um pouco de gosto de lágrima, mas sua leitura é doce e profunda, propiciando uma longa viagem às mais remotas lembranças e seus pequenos segredos e tristezas, unindo memória familiar, história, desenhos e literatura em uma narrativa precisa, delicada e emocionante.

Roney Cytrynowicz é historiador e escritor, autor de A duna do tesouro (Companhia das Letrinhas), Quando vovó perdeu a memória (Edições SM) e Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial (Edusp). É diretor da Editora Narrativa Um - Projetos e Pesquisas de História e editor de uma coleção de guias de passeios a pé pela cidade de São Paulo, entre eles Dez roteiros históricos a pé em São Paulo e Dez roteiros a pé com crianças pela história de São Paulo.

Sua coluna conta histórias em torno de livros, leituras, bibliotecas, editoras, gráficas e livrarias e narra episódios sobre como autores e leitores se relacionam com o mundo dos livros.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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