São Paulo, sábado, 18 de outubro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS

Escritor encerra vida com comédia

"La Ninfa Inconstante", obra póstuma do cubano Cabrera Infante, sai por selo espanhol e chega ao Brasil em 2009

Viúva montou livro deixado em papéis avulsos; a partir do ano que vem, serão reeditadas obras completas e mais um romance inédito


France Presse
Cabrera Infante descansa em pausa de trabalho voluntário, em Havana, em 1959; após 1961, passou a opor-se ao regime de Fidel

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

A morte de um homem que passou quarenta anos no exílio, sem nunca poder cumprir o sonho de voltar a ver a terra natal é sem dúvida uma história muito triste para ser contada.
Mas não foi assim com o célebre autor cubano Guillermo Cabrera Infante, que, banido da ilha pelo regime de Fidel Castro, viveu em Londres até ir-se deste mundo, em 2005.
Afinal, mesmo tendo passado os últimos anos de cama e num doloroso entra-e-sai de hospitais, Cabrera Infante escreveu um livro extremamente bem-humorado, conferindo às derradeiras linhas de sua biografia a idéia de que partiu daqui feliz.
Assim é "La Ninfa Inconstante" -obra póstuma do autor do clássico da literatura latino-americana "Três Tristes Tigres" (1964)- que acaba de sair na Espanha e deve chegar ao Brasil no começo de 2009.
A obra foi deixada terminada, mas completamente fora de ordem. Quem montou as centenas de papeizinhos manuscritos foi sua viúva, a também exilada atriz Miriam Gómez.
"Guillermo foi escrevendo num bloco de notas. Quando acabava cada capítulo ou passagem, arrancava a página e jogava numa caixa de madeira que eu coloquei ao lado da cama", conta ela em entrevista à Folha, por telefone, de Londres, onde segue vivendo, agora só.
O romance se passa em 1957, dois anos antes da Revolução Cubana, que implantou o socialismo na ilha.
A ambientação, portanto, é extremamente nostálgica. Os personagens passeiam pelo "malecón", pelas praias, bares e hotéis de Havana. Evocam os tempos em que Cabrera Infante viveu na capital cubana.
Ao mesmo tempo, trata-se do livro mais cheio de referências da língua inglesa da carreira do autor, como as obras do irlandês Jonathan Swift. Na introdução, deixou um alerta para quem fizesse o copidesque: "Se encontrar anglicismos, não os toque: essa é minha prosa. Apesar de tudo, essa história foi escrita na Inglaterra".

Bolero
A trama tem como centro a aventura sentimental entre um homem mais velho e uma moça de 16 anos que lhe pede que assassine sua própria mãe. "Há gente que tomou-a como uma "Lolita" cubana. Mas não é isso, tampouco o tema é a pedofilia.
Em Cuba, com essa idade, uma menina já é uma mulher por inteiro", diz Gómez.
A viúva conta que Cabrera Infante lhe deixou orientações claras para a edição do livro.
Teria pedido que a obra tivesse "um ritmo de bolero" e que ela prestasse atenção para que o texto mantivesse a cadência de poesia dentro da prosa.
"Ele me pediu para observar isso. E caso eu mesma não conseguisse editá-lo, que eu o rasgasse. Não queria que um editor fizesse esse trabalho."
Gómez diz que não acrescentou uma só palavra ao livro. E que encontrou dificuldades em vários pontos por não entender direito a caligrafia, especialmente no final, quando a enfermidade já não permitia que ele escrevesse de forma clara.
Para dar a medida do esforço que teve de fazer, colou nas primeiras duas páginas um exemplo de como estava a letra do autor a essa altura. Elas formam um capítulo solto, chamado "Habanidades".
Na opinião da viúva, "La Ninfa" traz um Cabrera Infante mais puro para seus leitores, pois ele não teve como retocar a obra. Ela surge publicada do modo que escreveu, sem que tenha tido tempo para relê-la.
"Às vezes penso que ele deixou essa trabalheira para eu fazer depois que ele morresse só para aliviar minha depressão com a sua partida. Se era isso que queria, deu certo."

Mais inéditos
Além desse texto, Cabrera Infante deixou outra novela inédita, "Cuerpos Divinos", já escrita há tempos, na qual Gómez começará a trabalhar na seqüência. O mesmo selo espanhol que lança ambas também comprou os direitos das obras completas do cubano, que pretende relançar a partir do ano que vem.
"Cuerpos" é um romance político, que evoca sua trajetória.
Cabrera Infante apoiou a Revolução no seu início, mas logo desentendeu-se com o regime e passou a ser um dos principais críticos de Fidel no exílio.
Sonhava voltar para morrer na ilha. Não teve tempo. Mas, atravessando as páginas de "La Ninfa", percebe-se que preferiu rir do que poderia ficar para sua história como um fim trágico.

LA NINFA INCONSTANTE
Autor: Guillermo Cabrera Infante
Editora: Galaxia Gutenberg (importado
Quanto: 21 (283 págs.)
Onde encomendar: livros em espanhol podem ser comprados pelos sites www.cervantes.com e www.crisol.es

TRECHO

-Quero que você mate a minha mãe -me disse. Pensei que não tinha escutado bem. Ela ainda tinha olhos de inocência, mas não havia pestanejado nenhuma vez. Olhos que não pestanejam criam uma mirada perigosa. Ou ela tinha lido as mesmas novelinhas policiais que eu li ou havíamos visto juntos os mesmos filmes noir em que Barbara Stanwick pede a Van Heflin que mate Kirk Douglas. Ou em que Jane Greer pede a Robert Mitchum que mate Kirk Douglas. Ou em que Jean Simmons mata sua mãe, seu pai e Robert Mitchum. Ou tínhamos visto todos os filmes baseados em romances noir. Tudo negro. Como a noite aí fora ou o resto da casa, porque somente a sala estava iluminada. Confesso agora que me pegou tão de surpresa que não pude, clichê, deixar de dizer-lhe: -O que é isto, um filme noir?

Extraído de: "La Ninfa Inconstante" (a ninfa inconstante), de Cabrera Infante Tradução: Sylvia Colombo



Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: 32ª Mostra de SP: Restauro de "Poderoso Chefão" honra original
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.