|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Crítica/"Capitu"
Roteiro para obra de Machado fica melhor na estante que na tela
Reedição de trabalho de Paulo Emílio e Lygia Fagundes Telles faz lembrar as dificuldades em adaptar o autor
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
C
onta Lygia Fagundes
Telles que, após o lançamento do filme "Capitu", de Paulo César Saraceni,
a atriz Isabella lhe disse que
nunca havia sido tão xingada
quanto após interpretar a personagem de Machado de Assis.
Com efeito, Isabella ficou
com a responsabilidade pelo
fracasso do filme. Uma revisão
talvez relativize tal culpa. Ela
nunca foi um prodígio de atriz.
No entanto, é possível ponderar que "Capitu" não era o filme
certo naquele momento. Em
1968, o Brasil tentava ver preto
e branco, certo e errado. Não
era um momento para a heroína dos olhos de ressaca.
A reedição do roteiro de Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia
Fagundes Telles para o filme
permite, hoje, figurar melhor
algumas das dificuldades que
ameaçam as adaptações de certos textos de Machado de Assis.
Para começar: quem seria a
nova Capitu? Esbarramos num
problema objetivo (há atriz
com porte e capacidade para o
papel no Brasil?) e em outro
subjetivo: quando cada um tem
a sua imagem da personagem
não há nada mais difícil do que
lhe atribuir uma imagem única.
Parece-me que não é o único
deste fascinante trabalho.
Lygia e Paulo Emílio transformaram "Dom Casmurro" em
35 bem articuladas seqüências
cinematográficas, que buscam
dar conta das sutilezas do
triângulo amoroso célebre,
bem como de aspectos da vida
brasileira do século 19.
Ora, Machado escreveu quase 150 capítulos. Há um tanto
de liberdade própria da literatura. Mas o enigma talvez não
se entregue tão simplesmente.
A escrita de Machado é diabólica. Onde inserir, num roteiro,
as menções a um sem número
de fenômenos, da ópera à lepra,
referidos no livro e que nos dão
conta de que, possivelmente,
Machado levasse o triângulo
amoroso muito menos a sério
do que Bentinho? Onde inserir
as formulações que, afinal, fazem de Machado, Machado?
Este não é, no mais, um problema para o roteiro resolver. É
antes uma questão de mise-en-scène que nos leva ao coração
do mistério da adaptação cinematográfica: a de transformar
as abstrações literárias em sinais, gestos, em suma, matéria.
Ao longo do roteiro existem
inúmeras e por vezes preciosas
indicações para essa passagem,
como na seqüência 25, com
Bentinho no escritório, entre
fotos que, como o mobiliário,
falam de costumes e comportamentos de um momento.
A relação com o leitor
Pode-se argüir ainda a opção
dos autores de deixar de lado
algo que para Machado era,
aparentemente, central: a relação com o leitor -tão importante que levou Hélio de Seixas
Guimarães a lhe dedicar um volume ("O Romance Machadiano e o Público de Literatura no
Século 19", Edusp), no qual
lembra que "Machado problematiza a figura quase improvável do leitor, procurando incorporá-la à forma do romance".
Seria esse "leitor improvável" um precursor do "espectador improvável"? Talvez ambos apontem para um impasse
doloroso: a impossibilidade de
obra no Brasil. E possam acrescentar sentido ao que costumamos chamar de "ironia" machadiana, que designa uma distância significativa entre o narrador e o narrado.
O interesse do texto de Machado é tão grande que não será
exagerado dizer que simplesmente não sucumbir diante da
tarefa hercúlea da adaptação já
é um feito admirável -foi isso
que aconteceu com o "Capitu"
de Paulo Emílio e Lygia.
No entanto, a rede de questões lançada pelo roteiro só se
pode realizar na mise-en-scène. Penso que este roteiro de
"Capitu" precisaria da paixão e
da poesia do Jean Renoir de
"Um Dia no Campo", da contenção precisa de um Howard
Hawks em "Paraíso Infernal",
do gosto pela ambigüidade de
um Rossellini, da modernidade
de um Abbas Kiarostami, da
delicadeza de um Walter Lima
Jr... Lygia Fagundes Telles
acredita que seu roteiro merece
bem uma segunda chance. Merece. Mas algo me faz crer que o
melhor é deixá-lo assim, sossegado e livre do risco de um novo
desgosto, na condição modesta,
mas sólida, de um belo volume.
CAPITU
Autores: Paulo Emílio Sales Gomes
e Lygia Fagundes Telles
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 34 (200 págs.)
Avaliação: bom
TRECHO
No tílburi, Capitu e
Bentinho estão um tanto
afastados e em silêncio. Ele
tamborila de leve na
almofada do banco, a outra
mão segurando a bengala.
Ensaia o seu assobio na
ingênua tentativa de disfarçar
o mal-estar, nem é um assobio
mas um soprozinho que
lembra a quadrilha. Fecha a
boca em meio a uma frase
musical e fica olhando em
frente. Capitu está tranqüila,
os braços cobertos pela
mantilha de renda branca, as
mãos entrelaçadas no regaço.
Os olhos um pouco apertados
revelam que está pensando,
pensando. Nítido, o barulho
ritmado das patas do cavalo e
das rodas nas pedras da rua.
Esse ligeiro assobio ele
recomeça na escuridão do
quarto, quando é apenas o
assobio que indica a sua
presença antes de acender o
lampião. A grande cama de
casal. Os consoles com os
pequenos lampiões de
opalina. O oratório parece
pulsar sob a luz avermelhada
de uma lâmpada votiva. Há
uma certa desordem no
canapé com suas almofadas
amassadas e uma peça de
roupa -um xale?- de
franjas enredadas caindo até o
chão. Capitu tira as longas
luvas brancas e as coloca na
cadeira onde ele já deixou a
casaca. Guardando ainda a
forma das mãos e dos braços
da dona, as luvas parecem ter
vida própria assim meio
entrelaçadas nos ombros
negros da roupa. Em mangas
de camisa, ele desata o laço da
gravata. Senta-se no canapé.
Ela acende o lampião do
toucador e vai tirando o colar.
Tira os brincos e abre o porta-jóias, uma caixinha de música
que desata a tocar uma
canção de ninar. Com um
gesto frio, ela baixa a tampa e
interrompe a música. Começa
a desfazer o penteado mas
tem o olhar no marido,
observando-o através do
espelho.
Extraído de "Capitu",
de Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia
Fagundes Telles
Texto Anterior: Filosofia: Ciclo discutirá "a condição humana" Próximo Texto: Escritora vai participar de mesa na Bienal Índice
|