São Paulo, sábado, 23 de agosto de 2008

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LIVROS

Crítica/"Capitu"

Roteiro para obra de Machado fica melhor na estante que na tela

Reedição de trabalho de Paulo Emílio e Lygia Fagundes Telles faz lembrar as dificuldades em adaptar o autor

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

C onta Lygia Fagundes Telles que, após o lançamento do filme "Capitu", de Paulo César Saraceni, a atriz Isabella lhe disse que nunca havia sido tão xingada quanto após interpretar a personagem de Machado de Assis. Com efeito, Isabella ficou com a responsabilidade pelo fracasso do filme. Uma revisão talvez relativize tal culpa. Ela nunca foi um prodígio de atriz. No entanto, é possível ponderar que "Capitu" não era o filme certo naquele momento. Em 1968, o Brasil tentava ver preto e branco, certo e errado. Não era um momento para a heroína dos olhos de ressaca. A reedição do roteiro de Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles para o filme permite, hoje, figurar melhor algumas das dificuldades que ameaçam as adaptações de certos textos de Machado de Assis. Para começar: quem seria a nova Capitu? Esbarramos num problema objetivo (há atriz com porte e capacidade para o papel no Brasil?) e em outro subjetivo: quando cada um tem a sua imagem da personagem não há nada mais difícil do que lhe atribuir uma imagem única. Parece-me que não é o único deste fascinante trabalho. Lygia e Paulo Emílio transformaram "Dom Casmurro" em 35 bem articuladas seqüências cinematográficas, que buscam dar conta das sutilezas do triângulo amoroso célebre, bem como de aspectos da vida brasileira do século 19. Ora, Machado escreveu quase 150 capítulos. Há um tanto de liberdade própria da literatura. Mas o enigma talvez não se entregue tão simplesmente. A escrita de Machado é diabólica. Onde inserir, num roteiro, as menções a um sem número de fenômenos, da ópera à lepra, referidos no livro e que nos dão conta de que, possivelmente, Machado levasse o triângulo amoroso muito menos a sério do que Bentinho? Onde inserir as formulações que, afinal, fazem de Machado, Machado? Este não é, no mais, um problema para o roteiro resolver. É antes uma questão de mise-en-scène que nos leva ao coração do mistério da adaptação cinematográfica: a de transformar as abstrações literárias em sinais, gestos, em suma, matéria. Ao longo do roteiro existem inúmeras e por vezes preciosas indicações para essa passagem, como na seqüência 25, com Bentinho no escritório, entre fotos que, como o mobiliário, falam de costumes e comportamentos de um momento.

A relação com o leitor
Pode-se argüir ainda a opção dos autores de deixar de lado algo que para Machado era, aparentemente, central: a relação com o leitor -tão importante que levou Hélio de Seixas Guimarães a lhe dedicar um volume ("O Romance Machadiano e o Público de Literatura no Século 19", Edusp), no qual lembra que "Machado problematiza a figura quase improvável do leitor, procurando incorporá-la à forma do romance". Seria esse "leitor improvável" um precursor do "espectador improvável"? Talvez ambos apontem para um impasse doloroso: a impossibilidade de obra no Brasil. E possam acrescentar sentido ao que costumamos chamar de "ironia" machadiana, que designa uma distância significativa entre o narrador e o narrado. O interesse do texto de Machado é tão grande que não será exagerado dizer que simplesmente não sucumbir diante da tarefa hercúlea da adaptação já é um feito admirável -foi isso que aconteceu com o "Capitu" de Paulo Emílio e Lygia. No entanto, a rede de questões lançada pelo roteiro só se pode realizar na mise-en-scène. Penso que este roteiro de "Capitu" precisaria da paixão e da poesia do Jean Renoir de "Um Dia no Campo", da contenção precisa de um Howard Hawks em "Paraíso Infernal", do gosto pela ambigüidade de um Rossellini, da modernidade de um Abbas Kiarostami, da delicadeza de um Walter Lima Jr... Lygia Fagundes Telles acredita que seu roteiro merece bem uma segunda chance. Merece. Mas algo me faz crer que o melhor é deixá-lo assim, sossegado e livre do risco de um novo desgosto, na condição modesta, mas sólida, de um belo volume.

CAPITU
Autores: Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 34 (200 págs.)
Avaliação: bom

TRECHO

No tílburi, Capitu e Bentinho estão um tanto afastados e em silêncio. Ele tamborila de leve na almofada do banco, a outra mão segurando a bengala. Ensaia o seu assobio na ingênua tentativa de disfarçar o mal-estar, nem é um assobio mas um soprozinho que lembra a quadrilha. Fecha a boca em meio a uma frase musical e fica olhando em frente. Capitu está tranqüila, os braços cobertos pela mantilha de renda branca, as mãos entrelaçadas no regaço. Os olhos um pouco apertados revelam que está pensando, pensando. Nítido, o barulho ritmado das patas do cavalo e das rodas nas pedras da rua. Esse ligeiro assobio ele recomeça na escuridão do quarto, quando é apenas o assobio que indica a sua presença antes de acender o lampião. A grande cama de casal. Os consoles com os pequenos lampiões de opalina. O oratório parece pulsar sob a luz avermelhada de uma lâmpada votiva. Há uma certa desordem no canapé com suas almofadas amassadas e uma peça de roupa -um xale?- de franjas enredadas caindo até o chão. Capitu tira as longas luvas brancas e as coloca na cadeira onde ele já deixou a casaca. Guardando ainda a forma das mãos e dos braços da dona, as luvas parecem ter vida própria assim meio entrelaçadas nos ombros negros da roupa. Em mangas de camisa, ele desata o laço da gravata. Senta-se no canapé. Ela acende o lampião do toucador e vai tirando o colar. Tira os brincos e abre o porta-jóias, uma caixinha de música que desata a tocar uma canção de ninar. Com um gesto frio, ela baixa a tampa e interrompe a música. Começa a desfazer o penteado mas tem o olhar no marido, observando-o através do espelho.

Extraído de "Capitu", de Paulo Emílio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles



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