Douglas Quinta Reis: mercado editorial perde um dos nomes que formaram a cultura geek no Brasil
PublishNews, Silvio Alexandre, 24/10/2017
Em sua coluna, Silvio Alexandre conta um pouco da história de Douglas Quinta Reis e sua importância na formação da Devir

Certas pessoas conseguem transformar os sonhos em realidade. São capazes de moldar o meio em que viviam. Carl Jung dizia que, se uma pessoa é talentosa, isso não significa que ela ganhou algo. Significa que ela tem algo a oferecer. O editor Douglas Quinta Reis, que faleceu no dia 13 de outubro, aos 63 anos, vítima de um ataque cardíaco fulminante, nos ofereceu muito.

Douglas Quinta Reis | © Divulgação
Douglas Quinta Reis | © Divulgação

Ele foi um dos fundadores do grupo Devir, reconhecido, junto com seu sócio Mauro Martinez dos Prazeres, como um dos principais nomes que ajudaram a popularizar os quadrinhos em nosso país. Por ter tornado a Devir, pioneira no Brasil, na publicação de RPGs (Role-Playing Games), um jogo que visa a colaboração entre os jogadores, ao invés da competição; e dos Cards Games, um jogo de estratégia.

Se hoje vivemos um momento em que as culturas nerd e pop (porque não são necessariamente a mesma coisa, embora intimamente entrelaçadas) alcançaram uma dimensão gigantesca, se temos histórias em quadrinhos com espaço considerável nas livrarias brasileiras; se temos grandes editoras com selo próprio para os quadrinhos; se temos eventos como a Comic Con Experience (CCXP), com um público na casa dos milhares; ou a existência de uma empresa de porte como o Grupo Omelete, a Devir está inserida neste contexto desde o início.

Douglas e Mauro se conheceram em 1979, na Unisys, uma empresa global de serviços e soluções de Tecnologia da Informação e, junto com outro colega, Walder Mitsiharu Yano, além de Deborah Fink, esposa do Mauro, fundaram a Devir, em 1987.

Eles haviam percebido a carência que havia no pais de material que gostariam de ler. Livros como O Senhor dos Anéis ou quadrinhos adultos importados quase não chegavam por aqui. Assim, criaram um plano para estabelecer uma rede de distribuição que pudesse fazer circular materiais importados e brasileiros em lugares especializados.

No início, o objetivo foi atender ao crescente número de leitores de histórias em quadrinhos que queriam discutir e acompanhar tudo sobre os seus personagens ou revistas preferidas. Imaginaram uma linha direta para conversar sobre temas que eles gostavam. Eles queriam agitar culturalmente o meio em que viviam.

Para isso idealizaram um sistema inovador similar ao de uma assinatura, que ficou conhecido como “Sistema de Reservas”. Isso permitiu que um público muito exigente composto por colecionadores, amantes da imaginação pudesse ter acesso e criasse uma ponte com o mercado norte-americano de quadrinhos, e também com uma grande variedade de títulos de editoras independentes americana e europeias, de forma a encontrar esse material em diversos pontos em todo o Brasil.

Além dos quadrinhos, e procurando desenvolver os mercados da imaginação, eles também começaram a importar revistas, livros e material sobre cinema, arte, desenho, e principalmente, RPG, para atender os jovens universitários que haviam descoberto esse jogo. O sucesso foi tão grande e começou a se expandir de tal forma que, em 1990, a Devir começou a traduzir e publicar os livros de RPG, em português. Além de abrir espaço para a publicação de autores nacionais.

Sempre inovando, a Devir começou em 1995, a importar e traduzir um jogo de estratégia que começava a despontar: Magic: The Gathering. Conhecido nos Estados Unidos como Card Games, um esporte intelectual, uma espécie de xadrez onde as peças são os cards, que acabou se tornando uma das categorias oficiais das Olimpíadas da Mente, que foram disputadas em Londres.

Apoiando sempre a divulgação e comercialização dos produtos com a realização regular de eventos e de ações localizadas de marketing e promoção, a contribuição para o mercado Geek se ampliou com diferentes linhas de produtos, focados no chamado entretenimento inteligente e dando oportunidade ao público fã de encontrar tudo que gosta – de literatura fantástica (ficção científica, fantasia e horror), a jogos de tabuleiro.

Atualmente conta com escritórios em Barcelona, Bolonha, Lisboa, Miami, Seattle, Cidade do México, Santiago e São Paulo.

Construindo mundos imaginários

Tive o privilégio de conviver com o Douglas, primeiro como amigo, e depois como funcionário durante os dez anos em que fui editor executivo da Devir.

Eu o conheci por volta de 1989, quando o Mauro (de quem eu já era amigo), me levou para visitar o novo espaço que eles tinham na Rua Pero Neto, próximo ao Metrô Praça da Árvore.

Ao chegar fui apresentado ao Douglas, que estava tirando cópias do Recado Devir, um fanzine semanal que eles publicavam, que servia para explicar o que estava chegando de produtos e falar das novidades. No Recado, ao falar sobre quadrinhos, eles aproveitavam para falar sobre Física Quântica, discutir sobre o Efeito Estufa ou debater sobre a Teoria do Caos, entre outros temas. Foi o primeiro grande informativo do que hoje chamamos de Cultura Geek.

Nessa época, eu trabalhava na Editora Aleph e tinha acabado de criar um selo editorial para publicar ficção científica. Assim, nossa conversa fluiu com facilidade pelo grande interesse que ele tinha pelo gênero. Depois desse encontro, estávamos sempre em contato.

Grande incentivador e de imensa generosidade, foi em uma de nossas conversas que propus, em 2007, a realização de um simpósio de Literatura Fantástica (ficção científica, fantasia e horror), dentro do Encontro Internacional de RPG (EIRPG), que era promovido pela Devir, no Colégio Marista Arquidiocesano, de São Paulo. Na época, o maior e mais importante evento do gênero do Brasil.

Tanto o Douglas como o Mauro, adotaram a ideia imediatamente. Eu já não trabalhava mais na Devir, depois que foram obrigados a fazer uma reestruturação na empresa por conta das dificuldades do país. Esta foi a oportunidade de voltarmos a realizar um projeto juntos.

Assim foi nasceu o Fantasticon - Simpósio de Literatura Fantástica que, em sua primeira edição, passou a ser um evento integrante do EIRPG. O Yano até mesmo disponibilizou verba para passagens aos palestrantes, e um carro com motorista para os deslocamentos dos convidados.

Em 2009, com a descontínuo do EIRPG, passei a organizar o Fantasticon na Biblioteca Viriato Corrêa, na Vila Mariana recém transformada como Biblioteca Temática de Literatura Fantástica.

O EIRPG foi um marco para o RPG, em particular, e para a cultura geek, em geral. O primeiro aconteceu em 1993, sob as marquises do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, com pouco mais de três mil participantes. Além do seu público tradicional no início, o evento passou a diversificar suas atividades e incluir entre elas: campeonatos de card games (principalmente Magic The Gathering e Yu-Gi-Oh), espaço para jogos de miniaturas e de tabuleiro, eventos de quadrinhos e o Fantasticon. Chegou ao recorde de 30 mil pessoas. As razões apresentadas pela organização para a descontinuidade do evento foram a crise econômica (nacional e global).

A força dos sonhos

A última vez que encontrei pessoalmente o Douglas, foi no mês passado, durante a festa de premiação do troféu HQMIX, onde entreguei para ele e ao Paulo Roberto Silva Jr., gerente editorial, os troféus que a Devir havia ganho. Duas semanas antes do seu falecimento, nos falamos combinando um encontro para discutirmos alguns projetos futuros.

Um dos primeiros trabalhos que fiz, quando comecei a trabalhar na Devir, foi um catálogo de divulgação dos produtos. Ele começava falando de um lugar onde os sonhos se concretizam. Eu escrevi:

“Existe um lugar onde os sonhos se concretizam, onde se pode encontrar hoje o fantástico mundo do amanhã, onde é possível conviver com um universo repleto de vilões implacáveis e heróis superpoderosos; de histórias do cotidiano a cenários futuristas e acima de tudo participar de um grupo único de pessoas. Este lugar é a Devir”.

Devir, na tradição, é o futuro em construção. É um conceito bastante discutido em Filosofia que parece significar o futuro como algo que se pode amoldar, em formação, um tempo no amanhã que vai sendo plasmado pelas nossas ações no hoje. Em certos textos, o Devir é usado como sinônimo de um futuro idealizado, de um paraíso que pode vir a ser. Como se os sonhos pudessem descer das esferas superiores e vir nos envolver, nos embalar.

Existe um Devir específico. Um Devir de fantasia e criação de história e arte, que empurra para emoções estéticas ou aventurescas, medo e dúvidas, quem sabe, a uma compreensão melhor das coisas ou de nossos próprios sentimentos. Histórias que nos levam a sonhar e sentir. Fantasias que nos tornam mais conectados com o real.

Douglas Quinta Reis buscou nos fantásticos universos da ficção e da fantasia estabelecer suas raízes, oferecendo produtos que transitam pelo desenvolvimento da sociabilidade, do raciocínio, do conhecimento, da arte, além de informações, cultura e diversão, mantendo viva e nítida a força dos sonhos de todos nós.

[24/10/2017 10:40:00]