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Abralic, a universidade em perigo e a literatura brasileira
PublishNews, Felipe Lindoso, 17/08/2017
Felipe Lindoso esteve na Reunião da Abralic para falar sobre a expansão internacional da literatura brasileira. Na volta, conta o que viu e como foi.

Semana passada, estive no Rio de Janeiro participando da XV Reunião da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), que aconteceu no campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Foi um encontro admirável. A UERJ é o alvo, a ponta de lança, da tentativa de desmonte da universidade pública brasileira, empreendida pelos usurpadores que perpetraram o golpe de estado parlamentar-judiciário que nos atinge hoje. É a primeira vítima, por conta da calamitosa situação do estado do Rio de Janeiro, unidade da Federação que foi amplamente beneficiada por investimentos públicos e privados nos últimos anos: a indústria naval renascida (e agora destruída, passando de 80 mil trabalhadores para menos de 20 mil); os investimentos urbanos em função da Copa do Mundo e das Olimpíadas, o transporte urbano, entre outros. O funcionalismo do Rio de Janeiro está há meses sem receber os salários, exceção, é claro, das forças de segurança, reconhecidamente mal treinadas e estupidamente brutais daquele estado, mas que garantem o mínimo de proteção para o governo, e que contam agora, com o emprego a contragosto de um contingente de forças federais. A UERJ está sem contrato de manutenção, limpeza e segurança há quase um ano, e professores e funcionários estão com os salários atrasados há quatro meses, além de não terem recebido o 13º salário.

Diante dessa situação, o esforço que esses professores e funcionários, com a participação dos alunos (quase 200 monitores voluntários) fizeram para organizar e executar um evento de grande porte, com convidados nacionais e estrangeiros foi simplesmente monumental. A UERJ resiste ao descalabro, a duras penas e com grandes sacrifícios.

A Abralic, como já disse, é a associação que reúne professores e especialistas em literatura comparada. E é isso que a faz importante para a nossa literatura e, por extensão, ao mercado editorial. A mesa da qual fiz parte tratava, precisamente, das dificuldades de expansão internacional da literatura brasileira.

Felipe Lindoso participa da Reunião da Abralic | © Marília Cabral / Divulgação
Felipe Lindoso participa da Reunião da Abralic | © Marília Cabral / Divulgação


Comparar os diferentes aspectos da literatura significa, precisamente, entender as relações do que os nossos escritores produzem vis-à-vis o que é produzido nesse grande concerto que é a República Mundial das Letras. Como nossa literatura se confronta e contribui para esse diálogo civilizatório – essencial para o entendimento entre os povos – que se expressa através da produção literária.

A difusão da literatura brasileira no exterior enfrenta enormes dificuldades. E isso tem a ver com a nossa indústria editorial.

Essas dificuldades começam com a posição subalterna da língua portuguesa no mercado internacional das letras, em particular diante da predominância do inglês como fonte do maior número e traduções em todo o mundo, por conta do poderio econômico, cultural e militar (por que não o dizer) dos países que falam essa língua, em particular os EUA e o antigo Império Britânico. Já tratei diversas vezes desse assunto, tanto no PublishNews como no blog O Xis do Problema. Quem quiser pode ler os posts sobre o assunto, listados no final.

Além dessa dificuldade básica, estrutural, nos defrontamos também com a incapacidade do estado brasileiro de estabelecer políticas públicas para o fortalecimento da posição cultural do país e de sua literatura. Sinceramente, rio para não chorar quando o Itamaraty fala em soft power na política exterior brasileira. Enquanto os EUA usam seu poderio econômico para resistir, por exemplo, ao Tratado da Diversidade Cultural, aprovado pela Unesco e já em vigor (teoricamente), países com forte tradição cultural, como a Grã-Bretanha, a Alemanha e a França desenvolvem extensas políticas públicas de difusão de seu idioma e sua cultura. Aí estão o British Council, o Goethe, a Alliance Française e o Institut Français para mostrar.

Até mesmo países de menor porte, como a Espanha e seu Instituto Cervantes e os programas culturais dos países nórdicos, desenvolvem programas vigorosos de difusão cultural, como parte de sua visão da importância do chamado soft power. Do mesmo modo, para nos matar de vergonha, o Instituto Camões, de Portugal. Um pequeno país, recém-saído de uma enorme crise econômica, com um PIB equivalente ao do Rio Grande do Sul e tamanho similar a Pernambuco, mantem centenas de centros culturais, cátedras, programas de apoio à edição de autores portugueses. Chegam a escarnecer da ex-colônia ao manter, aqui no Brasil, um programa de apoio para a publicação de autores portugueses, em português.

Pois bem, conversar sobre esse assunto em uma grande e bem organizada reunião de especialistas foi uma experiência, ao mesmo tempo, gratificante e deprimente. Gratificante pela oportunidade de poder explicar de modo mais claro a necessidade de fortalecer a difusão da nossa literatura no exterior. Deprimente por ter que relatar o que muitos já conhecem na prática, a falta de ações consistentes dos sucessivos governos brasileiros e de nossa diplomacia para enfrentar o problema de modo consistente.

Temos, evidentemente, valiosíssimas iniciativas individuais, com diplomatas empenhados nessa tarefa (e não apenas em relação à literatura, como também a outras expressões artísticas). Temos também o único esforço continuado, que já acumula mais de 20 anos de existência, apesar dos altos e baixos, que é o Programa de Apoio à Tradução, mantido pela Biblioteca Nacional.

O panorama geral, entretanto, é desolador.

Mas um encontro do porte e da importância da Abralic ser palco também para a apresentação desses temas, portanto, é duplamente alentador.

Em primeiro lugar, porque a reunião mostrou que a resistência da universidade pública brasileira é real. Ela não se deixará esmagar com facilidade. Em segundo lugar, porque os professores e pesquisadores presentes ao encontro tiveram a oportunidade de conhecer melhor esse problema também como um componente de suas dificuldades. A construção de uma solidariedade recíproca é imprescindível.

Voltando à questão da ameaça contra as universidades públicas, a pretexto de que a “maioria” dos seus alunos são ricos e, portanto, podem assumir o custo de sua manutenção, privatizando-as, um recente estudo da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), mostra que seu perfil social mudou. Dois terços do quadro dos alunos têm origem em famílias com renda média de até 1,5 salário mínimo. Quase 50% dos estudantes se autodeclararam pretos e pardos; 52% são mulheres; 60% vêm de escolas públicas; 35% trabalham; 53% utilizam transporte coletivo para frequentar as aulas. Dizer que as universidades públicas atualmente são frequentadas só pelos ricos não condiz, em absoluto, com a realidade.

As medidas mais recentes, como as cotas, a instituição do Enem e principalmente a criação de dezenas de novas universidades e campi facilitaram um processo de inclusão da população mais pobre e discriminada nas universidades públicas. O desempenho desses alunos não deixa nada a desejar em relação aos que não se beneficiam das medidas de inclusão.

É contra isso que se processa esse desmonte da Universidade pública, gratuita e democrática.

Não esqueçamos também, o que é particularmente preocupante para o mercado editorial, que as mudanças recentes no PNLD – ainda que tenha abrigado algumas medidas interessantes – vieram acompanhadas de redução de verbas. Desse modo, além de diminuir o acesso aos livros por parte de todos os alunos, perde-se a perspectiva de que a adoção da compra de livros para os estudantes dos cursos superiores seja adotada. A redução das verbas para a Capes e o CNPq colocam no horizonte uma diminuição até das verbas destinadas à aquisição de livros para as bibliotecas nas universidades.

Nesse contexto, a reunião da Abralic assume um papel que vai mais além das discussões acadêmicas sobre literatura comparada. A união de professores, alunos e funcionários da UERJ, que fizeram mutirões para limpeza, organizaram uma logística impecável para o encontro e ainda reuniram doações de alimentos para formação de cestas básicas para funcionários. Foi uma reunião de promoção do direito de aprender e, por conseguinte, de ter acesso aos livros e à leitura.

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Felipe Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br. Em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial nesse nosso país de dimensões continentais, sem bibliotecas e com uma rede de livrarias muito precária. Sob uma visão sociológica, ele analisa, entre outras coisas, as razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.

** Os textos trazidos nessa coluna não refletem, necessariamente, a opinião do PublishNews.

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