Meu panteão litero culinário
PublishNews, 02/12/2011
Meu panteão litero culinário

Monteiro Lobato, coleção Vagalume, Stella Carr, a Inspetora, Marcos Rey. As lembranças literárias de minha infância são comuns às da geração que descobriu o prazer da leitura nos anos 70. Bem, quase todas. Porque eu lia também, para espanto familiar, A cozinha maravilhosa de Ofélia, os fascículos Bom Apetite, umas brochuras com receitas do Rotary e do Lions Club e o que mais relacionado ao tema estivesse por perto na casa das minhas avós. E lia mesmo, da lista de ingredientes ao modo de preparo, como quem lê romance, policial, poesia. Por isso, gostava de mexer na cozinha. De escrever no caderno de receitas de minha mãe. De aprender o que é “araruta” para ajudar a tia a fazer uns biscoitinhos.

Mas foi só muitos anos mais tarde que passei a tratar “livros de cozinha” como literatura. Carlos Maranhão, então meu editor na revista Veja São Paulo, um dia veio com a indicação: “Leia Cozinha de Bistrô, da Patricia Wells. Além das receitas, as histórias são ótimas.” E são, mesmo. Textinhos sobre restaurantes, sobre ingredientes, relatos das refeições que ela fez pelos mais variados lugares da França. Patricia Wells inaugurou meu panteão literário – ou, devo dizer, litero culinário.

Em seguida vieram Nina Horta, Paula Wolfert, Claudia Roden, Julia Child, Marcella Hazan, mais recentemente Jamie Oliver, Mark Bittman, Nigella Lawson, Heloisa Bacellar. São autores que não se limitam a ensinar como fazer este ou aquele prato: nos textos de cada capítulo, de introdução a cada receita, eles também registram a História, os hábitos de uma época, da mesma forma como fizeram, nos anos 70, os livros da Ofélia e os caderninhos do Lions e do Rotary. Precisam escrever bem e organizar direito as ideias – afinal, se há um gênero em que os textos devem ter começo, meio e fim, aqui está ele. Roden e Wolfert são especialistas em compilar as tradições culinárias do Mediterrâneo e do Oriente Médio. Oliver e Lawson mostram como vem evoluindo a tão mal-falada cozinha britânica (e não sou eu quem faz esse julgamento: George Orwell, num ensaio de 1945, já dizia que os próprios ingleses consideram sua gastronomia a pior do mundo). Bittman, assim como Michael Pollan, é um advogado convincente da necessidade de fugir da indústria do fast-food e das comidas superprocessadas, e tenta persuadir as pessoas de que a saúde agradece se cozinharmos em casa, de preferência usando ingredientes sazonais – mas faz isso de um jeito atual, com direito a concessões diante da vida que levamos hoje, sem em nada lembrar a onda natureba e radical que adentrou algumas casas em tempos passados.

E eu quase ia me esquecendo de falar dos escritores que, mesmo sem encher seus livros de receitas, tratam da comida em crônicas, relatos de viagem, lembranças comoventes, historietas divertidas. É outro panteão, este mais literário do que culinário, onde estão MFK Fisher, Alice B. Toklas, Anthony Bourdain, Jeffrey Steingarten, J.A. Dias Lopes.

Continuo lendo receitas como quem lê literatura. Continuo comprando livros de cozinha – não gosto do termo “gastronomia”, que, embora não esteja errado, acho muito pedante – e hoje, só de ler com atenção uma lista de ingredientes e o modo de preparo, já sei se aquilo vai dar certo ou não; conhecendo bem os temperos, consigo até imaginar o sabor do prato pronto. É disso que vou tratar nesta coluna do PublishNews: dos títulos editados no Brasil, dos bons (e maus) exemplos estrangeiros, da complicação que é traduzir receitas, da migração para as plataformas digitais e, espero, de como minha experiência como leitora, usuária e editora pode contribuir para que tenhamos, sempre e cada vez mais, excelentes livros do gênero.

[01/12/2011 22:00:00]